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abr.12: Um antepassado

Publicado em 01 d abril d 2012

Viventes das Alagoas (1962) Capa da última ediçãoO velhinho apeou, entregou o cavalo a um moleque, subiu os degraus do copiar, avizinhou-se do banco onde me distraía olhando, na preguiça e no calor, as cercas do curral, a serra distante, as árvores torradas, os xique-xiques e os mandacarus que manchavam de salpicos verdes a campina amarela.

– É você o meu bisneto?

Ergui-me, atentei no corpo musculoso e aprumado, na boca enérgica, no rosto liso e vermelho, rosto de criança.

– Talvez seja. Cheguei ontem e não conheço ninguém por estes arredores. Tenho um bisavô no outro lado do rio. Talvez seja o senhor. Não sei.

– Sou eu mesmo. Vim fazer-lhe uma visita.

– Ora essa! Não devia ter vindo.

Homem tão idoso, pegando noventa anos, deixar o travesseiro e os cochilos para visitar um descendente quase ignorado, que já ia perdendo o parentesco. Manifestei-lhe a surpresa com modos de gente da cidade:

– Sinto muito. Um incômodo. Ia apresentar-me ao senhor, hoje ou amanhã. Cheguei ontem.

Interrompeu-me, examinou sério, estirando o beiço, os meus reduzidos muques, o peito cavado, os ombros que se encolhiam:

– Doente?

Balancei a cabeça, esmorecido, bambo. E, num gesto vago, mostrando o organismo chinfrim:

– Um bando de cacos.

– É o que se ganha na rua.

Bateu à porta, chamou, entrou pisando com força, as rosetas das esporas tinindo, foi abençoar a filha e os netos – minha avó e meus tios. Cumprida a obrigação, voltou ao copiar. E, enquanto lhe preparavam o café, levei-o ao quarto que me haviam dado, o melhor de todos, com reboco, junto ao quintalzinho onde recendiam craveiros e panelas de losna. Ofereci-lhe a cadeira única, sentei-me na rede, procurei nas teias de aranha, no pátio branco varrido pelos redemoinhos, no chiqueiro das cabras, nos xique-xiques e nos mandacarus objeto que pudesse interessá-lo. As aranhas, as cabras, os espinhos, o calor e a poeira nada me sugeriam. Contrafeito, remexi o interior, em vão. Nenhum assunto por dentro, nenhum assunto por fora.

Mas o constrangimento durou pouco. O ancião dirigiu a conversa, loquaz, amaciando a palavra rude, Era um vivente alegre, simpático, sem tremura e sem calvície. As mãos calejadas agitavam-se firmes, tencionavam amparar-me a fraqueza e a doença; uma admirável cabeleira de teatro enfeitava aquela estranha velhice, pura, limpa, isenta de pigarro, de bronquite; o riso franco exibia dentes claros, perfeitos, capazes de trincar os ossos.

Começou esquadrinhando os livros que se arrumavam em cima dum caixão. Abriu um volume.

– O senhor lê sem óculos?

– Naturalmente, nunca precisei disso.

Encostou a página de letra miúda aos olhos muito azuis, afastou-a, aproximou-a:

– Quelques? Que diabo é quelques?

Pronunciava cuelques. Soltou a brochura:

– Bem. Deve ser língua de gringo. Não entendo.

– Melhor. Se entendesse, não tinha tão boa vista. A leitura arrasa uma pessoa.

– Talvez arrase. Para que tanto papel? Enfim. Não sei não, os tempos estão mudados.

Não aprovou nem desaprovou a literatura exposta no caixão e na mesinha, estreita e coxa, prosa mais abundante que a que havia absorvido em quase um século.

Pôs-se a falar sobre D. Pedro II e a família imperial, como se se referisse a criaturas embarcadas para o estrangeiro na véspera. Conhecia poucos fatos, obtidos por via oral, mas estavam bem guardados.

– Que memória!

– Não é vantagem. Queria que eu andasse com besteiras, tresvariando? Sua bisavó morreu na caduquice. Miolo fraco. E ainda estava bem moça, a pobre. E calete. Pois, como ia explicando, a princesa Isabel agarrou o conselheiro e disse assim…

– Parece que o senhor foi testemunha.

– Foi o que se deu. Todo mundo sabe.

Com certeza o homem se lembrava de casos antigos e esquecia os acontecimentos novos. Engano. Experimentei-o e notei que o espírito de antepassado funcionava direito, sem falhas. Realmente o vocabulário dele tinha algumas centenas de palavras. O meu ia muito além, mas a significação dum desses instrumentos fugia às vezes e era-me indispensável consultar o dicionário. Se eu possuísse cabeça igual àquela, o meu trabalho seria fácil. Lamentava-me em silêncio – e o velho discorria sobre os negócios da fazenda. Interrompeu-se, observou as barrocas do chão e as paredes negras:

– Você aqui está mal acomodado. Vá lá para casa.

– Impossível. Não faço uma desconsideração a minha avó. Estou bem.

– Vá passar alguns dias comigo.

– Perfeitamente.

Desejava apresentar-me a mulher e o filho.

– Que idade tem ela?

– Vinte e cinco anos, coitada. Vive cheia de macacoas e não há remédio que sirva. O pequeno tem seis incompletos.

– Ora vejam que fim de mundo! Exclamei. Fiz dezoito anos e tenho um tio-avô com menos de seis. Incrível.

– É o último, afirmou o patriarca. A mulher, achacada, entregou os pontos, e daqui em diante não produz.

Graciliano Ramos
Rio de Janeiro, abr. 1942
(De Viventes das Alagoas, p. 87-90, 19ª edição, 2007, Editora Record, Rio de Janeiro)

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Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)