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ago.12: Um inquérito

Publicado em 01 d agosto d 2012

Linhas Tortas (1962) Capa da última ediçãoEm meado de agosto deste ano Jorge Amado tornou-se redator principal do conhecido hebdomadário Dom Casmurro, que realizou, chamando-o, um excelente negócio. O autor de Jubiabá é um sujeito inquieto, desses que não podem estar meia hora num lugar e têm precisão de mexer nas coisas, arrumá-las, desarrumá-las, tornar a arrumá-las. Por isso, logo nos primeiros números, o semanário saiu reformado.

Entre as novidades introduzidas nele anuncia-se uma série de entrevistas com as esposas de vários escritores. Jorge Amado espera que essas senhoras sejam francas e nos mostrem a literatura nacional em pijama e chinelos, escovando os dentes, aparando os calos, consultando o dicionário, engolindo cápsulas de aspirina. Ficaremos sabendo que José Lins do Rego toma café com leite, receia adoecer do coração e compõe os seus livros em caderninhos de papel pautado, desses que os vendeiros utilizam para registrar contas; teremos notícia da horrível pensão do major Nunes, onde Hermes Lima jogava bridge, estudava alemão com Gikovate e planejava o Tobias Barreto; conheceremos os gostos de Amando Fontes, que embirra com Mussolini, admira Franco, torce no futebol e constrói os seus romances com pachorra, uma folha hoje, outra daqui a dois meses.

Como só se ouvirão mulheres de escritores, os solteiros e os viúvos ficarão prejudicados. E como Rachel de Queiroz não tem mulher, o público ignorará que ela fez O quinze a lápis, deitada no soalho, de barriga para baixo.

Mas será verdade que a bisbilhotice de Jorge nos irá revelar a vida íntima dos escritores casados? Talvez não revele. Provavelmente as senhoras ficarão alarmadas na presença do repórter e não resvalarão nas confidências: hesitarão, atrapalhadas, entre as informações úteis à publicidade dos seus companheiros e as que lhes podem comprometer a reputação.

Que será conveniente dizer? Que eles roncam demais durante o sono, ralham à toa com os filhos, evitam os credores e redigem chateados uns artigos para os suplementos quando escasseia o numerário? Não, isso decerto não convém à glória de homens de letras. Será preferível afirmar que são excelentes pais de família, trabalham doze horas por dia, têm uma vida matrimonial perfeita, nunca se aborrecem em casa, não fumam, não bebem, não freqüentam a livraria. Uns anjos.

Essas virtudes, porém, vão produzir um efeito deplorável: o leitor do jornal começará a bocejar. Esperávamos umas criaturas diferentes das outras, cheias de manias, e vamos encontrar seres bem arranjados, obedientes ao relógio, sérios e monótonos, rigorosos no dever, intransigentes na monogamia, enfim indivíduos muito semelhantes a outros que se dedicam a ocupações razoáveis. Não aparecerá nenhuma esquisitice, nenhuma nota escandalosa, e tudo findará em sensaboria.

Parece que o inquérito iniciado por Jorge Amado vai gorar. Os escritores ameaçados, temerosos de alguma indiscrição, recomendam às consortes que falem pouco, não se metam em literatura. E elas se esquivam, mais ou menos atordoadas. Naturalmente. De uma sei que recebeu o convite de Jorge com uma recusa formal:

— Está doido? Isso é uma provocação. Se eu fosse dizer o que penso e o que sei de meu marido, não viveríamos juntos um dia. Vamos esperar que ele morra.

Agosto de 1939

IN: RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 264.

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Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas.

Memórias do Cárcere, cap. 5