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O romance e a cidade

Publicado em 09 d outubro d 2011

Gazeta de Alagoas
Por RAFHAEL BARBOSA
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Além de tudo que pode ser dito sobre o monumental romance que Graciliano Ramos escreveu pouco antes de ser preso, em 1936, Angústia é um livro sobre Maceió. A cidade é cenário e ao mesmo tempo personagem na história de Luís da Silva, funcionário público e escritor frustrado que, do quintal de sua casa na rua do Macena, passa a desenvolver uma paixão obsessiva pela vizinha Marina. No cotidiano do protagonista, ruas, praças, prédios e paisagens contribuem para o crescente movimento de opressão que o levará a um fim trágico. Percorrer esses lugares após a leitura de Angústia é uma viagem pelos muitos sentimentos que o livro desperta. Na semana em que a reedição comemorativa dos 75 anos do romance chega às livrarias, a Gazeta tenta desvendar os teores da relação que o leitor cultiva com a obra. Além de ouvir a opinião de artistas e estudiosos, preparamos um roteiro especial com todos os endereços que aparecem na narrativa – e ainda desafiamos o ator Igor de Araújo a criar sua versão de Luís da Silva num ensaio fotográfico exclusivo. É a nossa homenagem ao livro que chega aos 75 anos com força para arrebatar várias outras gerações de leitores. Não perca.

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A urbe de Graciliano

Maceió são duas cidades: uma para quem leu Angústia, outra para quem ainda não o fez. Nas ruas do Centro, do Bebedouro, nas praças Montepio, dos Martírios e Deodoro, há um sentimento impregnado pela presença de Luís da Silva, protagonista do romance escrito em 1936 pelo alagoano Graciliano Ramos e publicado no período em que ele esteve enclausurado como preso político. Em sua rotina, o funcionário público transitava por onde hoje circulam milhares de pessoas, igualmente anônimas. Todas carregam consigo questões comuns ao escritor frustrado que, no trajeto de casa – na Rua do Macena – para o trabalho – na Praça Dom Pedro II –, era consumido por pensamentos recorrentes: o aluguel, as prestações vencidas, os bicos pendentes… Nesses cenários, as transformações promovidas pelo tempo são agora bem mais nítidas, mas o poder da obra, lançada há 75 anos, continua inalterado.

Analista agudo da condição humana, Graciliano inventou pouco. Mesmo situada no território dos sonhos – como defendeu o crítico Otto Maria Carpeaux no artigo Visão de Graciliano –, sua prosa nos toma como matéria-prima essencial. Em meio a uma grande carga subjetiva, há um aspecto documental e biográfico capaz de provocar identificação em qualquer leitor.

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No encalço de Luís da Silva

RUA DO MACENA – O personagem Luís da Silva vivia na Rua do Macena, atual Rua Cincinato Pinto, onde situava-se o Colégio Diocesano e hoje funciona a Secretaria Estadual de Agricultura. Sua casa ficava perto da usina de luz elétrica.

RUA AUGUSTA – Também conhecida como Rua das Árvores, a via faz cruzamento com a Cincinato Pinto, de onde Luís da Silva avista pela primeira vez o flerte entre Julião Tavares e Marina.

RUA DA LAMA – Reduto da prostituição na Maceió dos anos 30, segundo o artigo de Enaura Quixabeira corresponde a uma “rua estreita na lateral da Igreja do Livramento, indo até a Praça dos Palmares”. A reportagem não conseguiu encontrar o local.

RUA DO SOL – Trajeto costumeiro do protagonista em suas andanças, é a rua de que desvia quando não quer encontrar Dr. Gouveia, seu credor do aluguel.

RUA DO COMÉRCIO – Localização do café frequentado por Luís da Silva, onde se encontra com o amigo Moisés e também com a prostituta que lhe serve de ouvinte. “Naquele espaço de dez metros formam-se várias sociedades com caracteres perfeitamente definidos, muito distanciadas”, descreve o livro.

INSTITUTO HISTÓRICO – Luís da Silva conhece Julião Tavares em uma recepção no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

CINEMA CAPITÓLIO – O protagonista acompanhava o casal Marina e Julião pelas ruas do Livramento e da Lama até chegar ao Capitólio, que ficava na esquina da Rua do Comércio com o Beco das Moedas.

BEBEDOURO – A casa da nova amante de Julião ficava em Bebedouro, onde Luís armou uma tocaia para assassiná-lo. O livro não faz menção a uma rua específica. Em busca do cenário ideal, a reportagem foi ao bairro e reproduziu a cena da morte de Julião Tavares num beco da Rua Tavares Barreto.

LEVADA – Um dos trechos percorridos por Luís da Silva no retorno após o assassinato de Julião. “Se me encaminhasse a Bebedouro, voltaria pela rodagem, entraria em casa antes de amanhecer. Apareceram luzes, as carolinas que enfeitam o canal, os eucaliptos da Levada”.

PRAÇA DOM PEDRO II – Luís trabalhava numa repartição do prédio que atualmente é usado como sede da Assembleia Legislativa de Alagoas.

PRAÇA MONTEPIO – Por onde Luís segue com Moisés após o encontro no café.

PRAÇA DEODORO – Cenário de passeios de Julião Tavares e Marina, aos olhos obsessivos de Luís da Silva. “Transformavam-se por momentos nas pessoas que vinham da Praça Deodoro, mas eu continuava a vê-los longe, em diferentes lugares”.

PRAÇA DOS MARTÍRIOS – Refúgio do protagonista.“O inverno tinha começado, quase sempre caía uma chuvinha renitente. Ia sentar-me num banco da Praça dos Martírios, e os pingos que tombavam da folhagem das árvores molhavam-me a cabeça descoberta e escaldada”.

ASSOCIAÇÃO COMERCIAL – É citada para comentar a família de Julião Tavares, donos do comércio Tavares & Cia. e “membros influentes da Associação Comercial”.

* Bonde da Ponta da Terra – Luís da Silva pegava um bonde para colaborar com um jornal à noite. O trajeto do bonde possuía um mapa de formato irregular com destino a Bebedouro ou ao Aterro (trecho de Jaraguá compreendido entre a Ponte dos Fonsecas até o primeiro armazém do Cais do Porto). O percurso passa pela Praça Deodoro; Rua do Macena (Cincinato Pinto); Rua Augusta (Ladislau Neto); Rua do Apolo (Melo Morais); Rua do Sol (João Pessoa); Rua do Comércio; Rua 1º de Março (Moreira Lima); Rua do Livramento (Senador Mendonça); Rua da Lama; Praça do Montepio (Bráulio Cavalcante) e Praça dos Martírios.

* Colaborou Rafael Cavalcanti

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Angústia visual

“Sei de alguém que não conseguiu passar da página 30 desse romance com medo de enlouquecer”, escreveu Jorge Amado em 1936 ao resenhar Angústia. Impactante, a narrativa em primeira pessoa criada por Graciliano, que lança seu protagonista Luís da Silva numa espiral de obsessão e ódio contra Marina e Julião Tavares, arrebata muitos leitores. Uma prova da capacidade do livro de provocar inquietação em quem se aventura por suas páginas são as sucessivas tentativas de transmutá-lo para outros suportes e linguagens – como o cinema e o teatro.

Em Alagoas, por exemplo, o fotógrafo e documentarista Celso Brandão foi um dos primeiros a investir na ideia de traduzir Angústia em imagens. Era 1979 quando o também alagoano Cacá Diegues (Bye Bye Brasil) resolveu incentivar o amigo conterrâneo a fazer um longa-metragem. “Eu escolhi Angústia porque era um romance que eu gostava muito, que achava que era muito maceioense e com o qual me identificava demais”, explica Celso. À época, o diretor de Ponto das Ervas convidou o ator Beto Leão para escrever o roteiro.

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Leitura afetiva

“Angústia foge completamente ao Graciliano Ramos que eu estava acostumado a encontrar nas carteiras da escola. O estilo seco e pontual, os grunhidos de Fabiano e as memórias de Paulo Honório deram espaço ao caos psicológico, ao excesso de palavras e imagens dos raciocínios circulares de Luís da Silva. À época, tomado pela recente descoberta de Clarice Lispector, Angústia foi para mim uma surpresa, pois, diferente do estilo etéreo de Clarice, ali estava o sentimento de culpa, remorso e humilhação tão cruamente postos. Ainda nos rascunhos dos meus primeiros textos, aquele era o tom que gostaria de encontrar, Luís da Silva era o personagem que sintetizava a angústia que meus personagens parcamente cercavam. Não por acaso Angústia consta dentre minhas leituras constantes e recorrentes.”

MAURÍCIO DE ALMEIDA – Escritor

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“Angústia é um romance sem doçuras ou alegrias, repleto de uma poesia áspera que economiza palavras e afetos. Uma literatura de um rigor formal que só poderia mesmo ter sido elaborada por um escritor que acreditava no valor da escrita apenas quando esta era duramente trabalhada. Retirou-lhe todos os adornos e excessos, criando uma obra esmeradamente lapidada, criativa e inesquecível.

A adaptação de um romance desse porte para os palcos será sempre uma tarefa árdua, mas personagens como Vitória, Marina e Luís da Silva são suficientemente estimulantes para qualquer dramaturgo. O enredo e os monólogos das personagens são ricos e fascinantes. Conseguindo aliar a admiração pelo autor ao respeito pela qualidade da obra, o adaptador já terá percorrido metade do caminho até o palco. Talvez por isso a encenação de Angústia, pelo grupo Infinito Enquanto Truque, tenha sido elogiada e premiada. O grande mérito, sem dúvida, é da obra original e do seu poder de ‘contágio’.

Graciliano Ramos desprezava as artimanhas do poder e das aparências. Construiu uma literatura onde as decantadas ‘belezas naturais’ de Alagoas não servem sequer como pano de fundo para a sua arte. Seus questionamentos culturais, sociais e políticos desenrolavam-se em primeiro plano e ele percebeu, como nenhum outro escritor alagoano antes dele, os engodos e as perversidades desse nosso esgarçado tecido social. Através de personagens primitivas e ingênuas como o Fabiano (Vidas Secas) ou de criaturas cultas e citadinas como o Luís da Silva (Angústia), GR nos descortinou algo bem mais significativo e denso do que belezas cenográficas – da geografia alagoana ou do texto literário. Deixou-nos uma obra magnífica e que é um permanente exercício de inteligência crítica. Lamentável é que muitos dos nossos conterrâneos ainda fiquem satisfeitos em apenas entoar loas bairristas como as de Julião Tavares: ‘Louvemos a nossa terra, os nossos coqueirais, o no nosso céu azul e as nossas praias inigualáveis!’. Pois bem, há quase 80 anos Graciliano mostrou que numa cidade ou estado (do mesmo modo que no teatro) o valor do ‘cenário’ é irrisório. As aparências enganam, sim, e costumam escamotear verdades feias como a alienação, o analfabetismo e a violência.

Inegável é o fato de que desde os anos de 1936, quando Angústia começou a ganhar notoriedade até os dias que correm, a obra de GR venceu de goleada a luta contra o tempo e o espaço. Tornou-se universal e atemporal, já foi publicada em mais de trinta países e tornou-se fundamental.

As ressonâncias de Angústia na atualidade são tão intensas que, ao lermos o traçado geográfico da capital alagoana descrito por Graciliano, percebemos que os lugares continuam iguais e os seus impasses estão inalterados; da praça do Montepio à praça dos Martírios, da rua da Lama à favela do Reginaldo. Sumiram os bondes e surgiram tecnologias impensáveis para o começo do século passado; mas, os problemas culturais, sociais e políticos são idênticos. Com os mesmos engodos e mesquinharias que tanto atormentaram o ‘ratofuso’ Luís da Silva, uma das personagens mais marcantes de um escritor genial – e, a isto sim, devemos entoar muitas e muitas loas.”

LAEL CORREA – Ator e dramaturgo

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“Angústia foi o último dos romances de Graciliano Ramos que tive contato, mas provavelmente o que mais me despertou interesse – tanto pessoal, como acadêmico. A paixão inicial foi incitada de várias maneiras; serviu de estímulo até mesmo o fato de parte da trama se passar em um cenário que me é familiar, o centro de Maceió. Mas notar que Graciliano coloca em xeque algumas das supostas verdades que criaram a respeito de sua obra (do escritor regionalista, ou militante, ou conservador na escrita etc.) é algo muito instigante. Até o humor, que por muito tempo foi visto como algo fora do contexto da obra do autor, podemos perceber em Angústia. É possível notar, também, uma espécie de inconformismo com o suporte, só a página não é suficiente: a gente vê, ouve, sente cheiros e até cansa com Luís da Silva. Angústia já é cinema, além das duas dimensões dos filmes convencionais.”

ALLAN NOGUEIRA – Jornalista e doutorando em Literatura

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Luís da Silva, segundo Igor de Araújo

Não foi inesperado que, ao receber o convite da reportagem para protagonizar o ensaio fotográfico apresentado nesta edição, o ator alagoano Igor de Araújo tenha reagido com alguma resistência. O telefonema aconteceu há três semanas. No calor do insight, o repórter tentava explicar a proposta das fotos. Ele deveria ler Angústia e criar sua versão para o personagem Luís da Silva em apenas 10 dias – o ensaio estava agendado para o fim de semana seguinte, no sábado, 01. O receio inicial de Igor era que o trabalho resultasse caricatural. “O risco sempre existe”, argumentei, antes de propor: “Vamos fazer da seguinte forma: a palavra final é sua. Depois de tudo, se o resultado não agradar, não usaremos o material”. Acordo fechado.

No período que antecedeu o ensaio, em contatos quase diários, o ator trazia novas ideias para a elaboração das imagens, sempre comentando suas impressões sobre o livro ao tempo que a leitura avançava. Até então, São Bernardo era sua única imersão no universo de Mestre Graça.

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Observação foi o método, diz ator

“Ao encontrar pessoas no Centro de Maceió, ao olhá-las, quis pensar em trechos de Angústia. Julguei esta a forma mais espontânea de tentar parecer-me, ainda que vagamente, com Luís da Silva. Porém, de mim para mim, não sei se consegui o feito; talvez, somente pensar não baste. A mulher de cabelos castanhos e shorts me fez lembrar a seguinte passagem: “Antônia recebe o salário, entrouxa os cacarecos, beija as crianças e sai cantando, certa de que encontrou um homem. Volta faminta, com marcas novas de ferida”.

O pedreiro que dava informações encaixou-se aqui: “O homem gordo era pedreiro, via-se pelas manchas de cal na roupa. Pedreiro com aquele corpo, que perigo! Um cochilo no andaime, pisada em falso na ponta da tábua, e no dia seguinte a família estaria de luto”. O fragmento para a senhora sentada no batente do portão: “Agora eu conhecia mais ou menos d. Adélia, falava com ela, parava na calçada às vezes: – ‘Bom dia, boa tarde, sim senhora, como tem passado?’.

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