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Lembranças de Graciliano

Publicado em 19 d outubro d 2012

2012: 120 anos de Graciliano    O Velho Graça, Boitempo Editorial

Jornal Valor Econômico
Por DIEGO VIANA
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Graciliano Ramos só se encontrou pessoalmente com Getúlio Vargas uma única vez, em pleno Estado Novo, numa calçada do bairro carioca do Catete, sede do palácio presidencial ocupado pelo gaúcho. Getúlio reconheceu o escritor, que vivia em uma pensão próxima, e o cumprimentou. Mas Graciliano passou sem responder. Entre 1935 e 1936, o escritor estivera preso pelo regime de Getúlio, sem acusação formal – episódio que seria transformado nos volumes de “Memórias do Cárcere”, obra levada ao cinema por Nelson Pereira dos Santos em 1984.

A narração do encontro é um dos acréscimos que o jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dênis de Moraes fez à reedição de sua biografia de Graciliano Ramos (“O Velho Graça”, Boitempo, 360 págs., R$ 52,00), em celebração dos 120 anos do escritor nascido em 1892 em Quebrangulo (AL). Outras comemorações da efeméride estão programadas. No início do mês, o diretor-geral da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Mauro Munhoz, anunciou que o homenageado da edição 2013 do evento será Graciliano. Segundo a organização da Flip, “escritor, jornalista e político, Graciliano Ramos teve uma vida em que a literatura e a política se entrelaçaram e, não raro, as convicções e atividades políticas inspiraram suas obras de forte conteúdo social”.

A versatilidade e o engajamento político de Graciliano fizeram do autor alagoano “um dos escritores mais singulares da literatura brasileira”, nas palavras de Moraes. O biógrafo cita as glórias e os tormentos que seu personagem conheceu. Foi um romancista aclamado pela crítica, mas também, por outro lado, preso político de um regime repressivo e, no último decênio de vida, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante a Guerra Fria, “sempre obrigado a ter vários empregos para sobreviver”. Um desses empregos foi no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, justamente o regime que Graciliano criticou e o encarcerou.

“Você está cortando tanto que esse livro vai acabar saindo em branco!”, disse a mulher do escritor, quando ele revisava “Vidas Secas”.

Moraes ressalta, também, a figura do autor de “Vidas Secas” e “Angústia” como pessoa pública. Ele foi prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, onde residiu de 1910 a 1930 (com um breve intervalo no Rio em 1914-1915). Ao renunciar à prefeitura, mudou-se para Maceió, onde se tornou diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, depois diretor da Instrução Pública do Estado. Já no Rio, em 1939, foi nomeado inspetor federal de ensino secundário da então capital do país. As experiências justificam que seu biógrafo se refira a Graciliano Ramos como “um dos mais eloquentes exemplos da corda-bamba em que caminha um intelectual crítico no Brasil”. E acrescenta: ainda hoje. O retrato de Graciliano é o de um criador “dividido entre o binômio criação-reflexão e a necessidade de buscar alternativas para se sustentar financeiramente”.

A breve experiência de Graciliano à frente do Poder Executivo de um município brasileiro, como prefeito de Palmeira dos Índios, deixou como legado dois relatórios de prestação de contas que, hoje, são lembrados sobretudo por seu valor literário e o tom corrosivo, característico de Graciliano. Sobre o antigo contrato de eletricidade do município, escreve o prefeito: “A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá”.

Moraes caracteriza Graciliano como “um prefeito revolucionário”, que pôs fim à corrupção na gestão municipal, controlou as finanças, fez obras em bairros pobres, abriu estradas e recuperou escolas. Quando teve de multar o próprio pai, Sebastião Ramos, porque sua loja descumpriu normas municipais, Graciliano afirmou: “Prefeito não tem pai, a lei vale para todos”. Segundo Moraes, foi a repercussão dos relatórios de Graciliano, primeiro em Maceió e, em seguida, no Rio, que lhe rendeu convites para publicar na então capital federal os romances “Caetés” (1933) e “São Bernardo” (1934).

Outra passagem acrescentada à biografia diz respeito à carta que o escritor chegou a redigir em 1938, mas jamais enviou a seu destinatário, o mesmo Getúlio Vargas do encontro fortuito no Catete. “Mesmo não a tendo enviado, um sinal de sua importância para Graciliano foi o fato de tê-la guardado, quem sabe já imaginando uma divulgação posterior”, especula o biógrafo. Segundo Moraes, trata-se de “um desabafo íntimo sobre as vicissitudes que enfrentara no período da prisão”, mas em tom respeitoso, ainda que com estocadas irônicas. Graciliano comenta, por exemplo, que não chegou a conhecer o delegado de polícia, porque se esqueceram de interrogá-lo. “Depois de onze meses abriram-me as grades, em silêncio, e nunca mais me incomodaram.”

Tristão de Athayde, que escreveu o posfácio de “Viventes das Alagoas”, de Graciliano, definiu a obra do autor alagoano como uma síntese entre “o fogo da paixão social que sempre o empolgou” e a capacidade de alcançar um padrão literário tecnicamente perfeito. E prossegue: “Homem íntegro e integral em sua vida doméstica, social e intelectual, homem com arestas apesar de sua participação efetiva nos movimentos históricos e políticos de sua época, Graciliano Ramos ficará na história de nossas letras como a imagem do escritor em sua mais pura expressão”.

“O realismo crítico não teria o mesmo vigor sem o compromisso humanista de Graciliano”, acrescenta Moraes. Demonstrando interesse na complexidade da condição humana, diz, Graciliano fez da literatura “um meio de desvelar e tentar entender os sentidos da passagem do homem pela Terra”.

A par do olhar aguçado sobre a realidade da vida humana, Graciliano foi um escritor que privilegiou a concisão e a clareza; conta-se dele que se revoltou quando um redator da revista que editava utilizou o termo “outrossim”. Nas palavras do próprio escritor: “Odeio gorduras desnecessárias e derramamentos insuportáveis”. Moraes conta que Heloísa Ramos, mulher de Graciliano, comentou a forma obsessiva como cortava o texto de “Vidas Secas”, considerada sua obra-prima: “Você está cortando tanto que esse livro vai acabar saindo em branco!”

O compromisso com a qualidade do texto literário pôs Graciliano em rota de colisão com o realismo socialista que emanava da União Soviética stalinista de seu tempo, sob influência de Andrei Jdanov, comissário cultural de Stálin. Embora filiado ao PCB, Graciliano deixou claro seu pensamento sobre as teses estéticas de Jdanov. Entre amigos, segundo Moraes, referia-se ao comissário como “cavalo”.

Também na linha das comemorações pelos 120 anos de nascimento de Graciliano Ramos, a editora Record lança o livro “Garranchos – Achados Inéditos de Graciliano Ramos” (378 págs., R$ 49,90), organizado por Thiago Mio Salla. O livro contém textos os mais diversos, de crônicas de jornal a anotações pessoais.

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CONHEÇA A OBRA DE GRACILIANO RAMOS

  • Caetés (1933)
  • Caetés – edição especial 80 anos (2013)
  • S. Bernardo (1934)
  • Angústia (1936)
  • Angústia – edição especial 75 anos (2011)
  • Vidas Secas (1938)
  • Vidas Secas – edição especial 70 anos (2008)
  • Vidas Secas – em quadrinhos (2015)
  • Infância (1945)
  • Insônia (1947)
  • Memórias do Cárcere (1953)
  • Viagem (1954)
  • Linhas Tortas (1962)
  • Viventes das Alagoas (1962)
  • Garranchos (2012)
  • Cangaços (2014)
  • Conversas (2014)
  • A Terra dos Meninos Pelados (1939)
  • Histórias de Alexandre (1944)
  • Alexandre e Outros Heróis (1962)
  • O Estribo de Prata (1984)
  • Minsk (2013)
  • Cartas (1980)
  • Cartas de Amor a Heloísa (1992)
  • Dois Dedos (1945)
  • Histórias Incompletas (1946)
  • Brandão entre o Mar e o Amor (1942)
  • Memórias de um Negro (1940) Booker T. Washington, tradução
  • A Peste (1950) Albert Camus, tradução

“Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia montar em burro bravo!”

Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)