Lampio de palavras: Graciliano Ramos
Publicado em 17 d maio d 2013
Do jornal Valor Econmico
Por IEDA LEBENSZTAYN
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Na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, encontrei “Dois Irmos”, artigo de Graciliano Ramos indito em livro. Saiu em “Diretrizes” em setembro de 1938, um ms e alguns dias depois de terem sido decapitados Lampio, Maria Bonita e cangaceiros do seu bando. Integra uma srie de crnicas em que o escritor reflete sobre problemas do Nordeste, do Brasil e da civilizao a partir da questo do cangao: “Lampio”, “Virgulino”, “Cabeas”, “O Fator Econmico no Cangao”, “Dois Cangaos”, “Antnio Silvino”, “Corisco” e “Desordens”.
A primeira delas, “Lampio”, de 1931, foi publicada na revista alagoana “Novidade” e hoje consta do livro de crnicas “Viventes das Alagoas”. Graciliano j explicitava que no lhe interessava apenas o indivduo Virgulino Ferreira, mas a motivao do “lampionismo”: a necessidade de viver levava os sertanejos a aderirem ao banditismo.
Posterior priso de Graciliano (1936), como os demais textos mencionados, “Dois Irmos” chama a ateno para as “chuvas de notcias sangrentas” que vinham do Nordeste em 1938: o problema da seca na regio, no resolvido at hoje, aponta para o fator econmico e poltico, fonte de violncia. A barbaridade afligia o escritor, ento no Rio de Janeiro, migrante forado, sado da cadeia no incio de 1937. A estrutura social fincada em desigualdades, gerando fome e luta por sobreviver, resultava na violncia de cangaceiros e da polcia, patente na degola de Lampio e de seu grupo em julho de 1938 e na exposio das cabeas, atrocidades to noticiadas poca.
Revoltado contra injustias e desejoso de ao, porm intelectual, afeito palavra escrita, Graciliano se inquietou com as questes do cangao e do beatismo. Mais do que meros assuntos na ordem do dia, eles carregam uma rede de problemas que atingiam a sensibilidade do escritor, pedindo-lhe reflexo e forma artstica.
O mote de “Dois Irmos” “Pedra Bonita”, romance de Jos Lins do Rego lanado em 1938. Mas Graciliano no trata minuciosamente do livro, e sim de uma diviso nele presente, entre dois irmos – o cangaceiro e o afilhado do padre. Com agudez, destaca que “a disperso de foras” entre os irmos, ambos desgraados e sequiosos de mudanas, porm adeptos de “processos de salvao contraditrios”, favorecia seus opressores.
notvel a fora potica e crtica do artigo de Graciliano. Evocando as imagens de Esa e Jac, o bruto e o sonhador, mostra que fome e injustias levavam sertanejos brutalidade, sede de vingana, da o lampionismo; mas tambm podiam resultar em resignao, no potencial de piedade e de conscincia crtica. Nesses caminhos possveis dos sertanejos, o leitor reconhece os impasses que do forma s personagens de Graciliano.
O “Esa sertanejo” Lampio: depois de aguentarem injustias, muitos se entregavam ao cangao, a assassinatos e roubos – reaes violentas explorao no eito, aos desmandos dos soldados, dos poderosos.
“Esa arrojado, tem o corao ao p da goela e pouco interior. O que vem de fora no o penetra muito: bate e volta, traduz-se em movimento. E como o que recebe de ordinrio brutalidade, a brutalidade faz ricochete e atinge quem o ofendeu. [?] Por isso, quando na feira um soldado lhe planta a reiuna em cima da alpercata, apruma-se e rebenta-lhe o focinho com um murro, se o agressor est desacompanhado; se no est, vai esper-lo numa volta de caminho, passa duas semanas emboscado [?]. Mata-o, fura-lhe a cartida com o punhal [?].”
Essa imagem do Esa sertanejo traz mente o desejo irrealizvel de Fabiano, de “Vidas Secas” (1938): tornar-se cangaceiro e se vingar do soldado que o prendera injustamente e o espancara – matar os donos do soldado, os governantes. E como no pensar em Paulo Honrio, de “So Bernardo” (1934), cuja realidade de explorado se traduziu em movimento at que, assassino e ladro, ele se fizesse proprietrio explorador? Funcionrio humilhado, Lus da Silva respondeu com dio de “cangaceiro emboscado” a Julio Tavares, redundando no crime de “Angstia” (1936).
J o outro irmo, o Jac sertanejo,, o homem capaz de sonhos, gentileza, piedade e pacincia. A misria o acompanha: “Jacob, homem de sonho, diverge muito do irmo. doce, resignado, constri escadas que anjos percorrem, aguarda longos anos a realizao de promessas que julga ter recebido. Como as promessas no se efetuam, fica outros anos encolhido, espiando o cu. [?] esse homem piedoso continua miservel, habitante duma regio medonha que certa literatura tem revelado indiscretamente”.
Diversa dessa diviso de caracteres de “Pedra Bonita”, a arte da personagem Fabiano carregar em si a tenso entre os “dois irmos”. Esa e Jac sertanejo, embora bruto e sedento de se vingar das injustias, o retirante no mata o soldado: “guarda a sua fora”, tico em sua resignao e apego aos sonhos de mudana junto famlia. Tambm Paulo Honrio e Lus da Silva tm uma face de Jac: narradores de suas tragdias, doura e piedade convertidas em angstia, so homens de sonhos frustrados.
Ressaltam do artigo a sensibilidade e o olhar crtico s incongruncias do pas, em que o intelectual, Lampio de palavras, entre o mpeto revoltoso de Esa e o sonhar compungido de Jac, combatido como “extremista”. Graciliano alude com ironia sua priso (1936): a denncia dos problemas da realidade brasileira, tornada chavo com a revoluo de 1930, redundou em sofrimento para quem denunciava de fato, sem enfeites, os molambos.
Assim, “Dois Irmos” expressa o desejo do escritor de que se observasse o cangao em sua complexidade: propalado como heroico pela imprensa, o assassinato de alguns bandoleiros pela fora policial no significava o fim da misria no Nordeste.
Em sua arte, assim como ao dirigir a Instruo Pblica de Alagoas, Graciliano agiu contra a misria, a ignorncia e os preconceitos gritantes. Esse “extremismo” seria repreendido com a priso do escritor, e a ironia da carta (no enviada) a Getlio Vargas, igualmente de 1938, nos cala.
“[?] Como disse a V. Excia., a comisso repressora dum dos extremismos [?] achou inconveniente que eu permanecesse em Alagoas, trouxe-me para o Rio e concedeu-me hospedagem durante onze meses. Sem motivo, suprimiu-se a hospedagem, o que me causou transtorno considervel. Agora necessrio que eu trabalhe, no apenas em livros, mas em coisas menos areas. Ou que o Estado me remeta ao ponto donde me afastou, porque enfim no tive inteno de mudar-me nem de ser literato. [?] ignoro as razes por que me tornei indesejvel na minha terra. Acho, porm, que l cometi um erro: encontrei 20 mil crianas nas escolas e em trs anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos. No sei bem se pratiquei outras iniquidades. possvel. Afinal o prejuzo foi pequeno, e l naturalmente acharam meio de restabelecer a ordem.”
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Ieda Lebensztayn, autora de “Graciliano Ramos e a Novidade: o Astrnomo do Inferno e os Meninos Impossveis” (Editora Hedra), doutora em literatura brasileira pela USP e ps-doutoranda no IEB-USP, bolsista da Fapesp
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