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Palavra implacável

Publicado em 18 d outubro d 2014

Por Severino Francisco
para o UAI Divirta-selink original

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Coletânea de entrevistas e depoimentos ilumina a relação entre a vida e a obra de Graciliano Ramos

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De maneira semelhante ao amigo Rubem Braga, parece que Graciliano Ramos trazia uma tabuleta em cima da testa com a advertência: “Cuidado, escritor feroz. Ele morde, principalmente, jornalistas curiosos”. O próprio Graciliano costumava fazer uma introdução que se tornou quase clássica aos repórteres ou escritores que lhe solicitavam depoimentos: “Não gosto de falar a meu respeito, não tenho importância alguma”. E acrescentava: “Não vejo assunto para entrevista, mas, se vai mesmo escrever, pode anotar, também, que não gosto de fascistas”. No entanto, apesar da fama de arredio, ranzinza e intratável, Graciliano concedeu inúmeras e reveladoras entrevistas, enquetes e depoimentos. Eles foram reunidos por Ieda Lebennsztayn e Thiago Mio Salla em Conversas com Graciliano (Ed. Record).

Essa coletânea traça um retrato estilhaçado de Graciliano, com histórias saborosas. Vamos a elas. O sergipano Joel Silveira, um dos melhores repórteres da história da imprensa brasileira, manteve várias conversas com o escritor. Nos anos 1940 ou 1950, todo jornalista que se prezasse tinha fumaças de literato. Joel escreveu um conto que considerou muito bom, encheu-se de coragem e pediu a Graciliano para ler e avaliar. O mestre Graça leu tudo com muita atenção, lentamente, examinando cada detalhe e, ao fim, sem dizer uma palavra, rasgou lauda por lauda, em pedacinhos e jogou na lata de lixo.

Joel tremeu de raiva por dentro, mas aguentou o baque. Alguns anos mais tarde, os dois já haviam se tornando muito amigos e ele perguntou a Graciliano: “Você fez em picadinhos o meu conto sem dizer nada? Será que ele era muito ruim mesmo?”. E Graça respondeu direto: “Uma porcaria. Tinha gerúndio demais. Gerúndio só quando absolutamente necessário. Dos supérfluos a gente deve fugir como o diabo da cruz”. A integridade sertaneja de Graciliano raiava a grosseria, costumava ser chocante e provocava um efeito cômico.

Mas, além da lição de franqueza, ele deu, também, uma lição de estética, ao comparar a faina das lavadeiras de Alagoas com o ofício do escritor. Elas começam com uma primeira lavada. Torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer, ensaboam, enxáguam, jogam mais água. Somente depois disso colocam para secar: “Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Falar sozinho

O sentido autobiográfico da obra de Graciliano não constitui nenhuma novidade. No entanto, esses depoimentos esparsos reunidos agora em livro projetam uma luz ainda mais dramática na relação entre a vida e a escrita do autor alagoano. O pai era brutal e a mãe ranzinza e seca de afeto. Enfrentou dificuldades no aprendizado das primeiras letras e hostilidade da família: “Convenceram-me de que eu era um idiota”. Abandonou a escola, mas foi salvo pela leitura das ficções de José de Alencar, de Aluizio de Azevedo, de Balzac, de Eça de Queiroz: “Não podendo falar com os outros, habituei-me a falar só: a escrever”.

Nunca mais frequentou os bancos das escolas. Aos trancos e barrancos, perdido em Palmeiras dos Índios, cidadezinha do interior de Alagoas, Graciliano avançou na ilustração de maneira inteiramente autodidata. Devorava ficções, gramáticas e dicionários como se fosse o bode Francisco Orelana, personagem dos quadrinhos do cartunista Henfil: “Dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato”, afirma Graciliano em uma entrevista.

Graciliano reconhecia o mérito da operação de saneamento básico promovida pelo modernismo paulista de 1922 nos valores acadêmicos que dominavam a cena literária brasileira no início do século 20, mas fazia sérias restrições ao movimento: “Sempre fui antimodernista”, afirma. Em outra entrevista, ele emenda: “Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. (…) Nas leituras que tenho feito, para a organização de antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. (…) Se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente”.

Embate com Machado

Machado de Assis também não escapa de receber vergastadas críticas. Embora fosse reconhecido na condição de grande escritor, Graciliano lhe negava o status de romancista: “Do ponto de vista da técnica novelística, todos os seus romances são deficientes. São misturas de crônicas, ensaios, aforismos, meditações, contos, sobretudo de contos. O Brás Cubas não é outra coisa senão uma narração incoerente, com uns contos interpolados. Magníficos contos, aliás, pois Machado é grande nesse gênero, maior entre os brasileiros.”

Graciliano critica, também, a postura ambígua de Machado em relação ao tempo em que viveu: “Ademais, o que mais me distancia de Machado de Assis é o seu medo de definir-se, a ausência completa da coragem de uma atitude. O escritor tem o dever de refletir a sua época e iluminá-la ao mesmo tempo. Machado de Assis não foi assim. Trabalhando a língua como nenhum, poderia ter feito uma obra transitável às ideias.”

O reparo aos modernistas reverbera em Machado. Graciliano era ligado à tradição clássica do romance francês do século 19. Não compreendeu a implosão inovadora da narrativa linear tanto em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, quanto em Serafim Ponte Grande e João Miramar, de Oswald de Andrade. E também não percebeu que o Bruxo do Cosme Velho se posicionou em face dos descalabros da política, das aberrações da escravidão ou das desigualdades sociais. Mas, no estilo machadiano, irônico, oblíquo e dissimulado. Quer dizer, Graciliano era o anti-Machado de Assis.

Como se vê, essa coletânea não se presta a alimentar a bisbilhotice vã que domina a era das celebridades. Na forma errática, fragmentária e digressiva da conversa, ela ilumina a vida e a obra de Graciliano.

Ele publicou o primeiro romance, Caetés, aos 41 anos. Antes, escreveu vários e queimou: “Devia ter queimado Caetés também”. Sempre foi o crítico mais impiedoso de sua obra: “Não vale nada; a rigor, até, já desapareceu”, avalia em uma entrevista. Nisso, o mestre Graça se equivocou gravemente. A sua obra nasceu e permanece clássica enquanto a de vários dos seus contemporâneos tornou-se datada pelo tempo, esse crítico literário implacável.

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CONHEÇA A OBRA DE GRACILIANO RAMOS

  • Caetés (1933)
  • Caetés – edição especial 80 anos (2013)
  • S. Bernardo (1934)
  • Angústia (1936)
  • Angústia – edição especial 75 anos (2011)
  • Vidas Secas (1938)
  • Vidas Secas – edição especial 70 anos (2008)
  • Vidas Secas – em quadrinhos (2015)
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  • Linhas Tortas (1962)
  • Viventes das Alagoas (1962)
  • Garranchos (2012)
  • Cangaços (2014)
  • Conversas (2014)
  • A Terra dos Meninos Pelados (1939)
  • Histórias de Alexandre (1944)
  • Alexandre e Outros Heróis (1962)
  • O Estribo de Prata (1984)
  • Minsk (2013)
  • Cartas (1980)
  • Cartas de Amor a Heloísa (1992)
  • Dois Dedos (1945)
  • Histórias Incompletas (1946)
  • Brandão entre o Mar e o Amor (1942)
  • Memórias de um Negro (1940) Booker T. Washington, tradução
  • A Peste (1950) Albert Camus, tradução

“Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia montar em burro bravo!”

Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)