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dez.14: Conversa sobre a literatura francesa

Publicado em 01 d dezembro d 2014

Conversa sobre a literatura francesa

De Graciliano Ramos [1]

 Não necessitamos de outras palavras para os nossos leitores sobre Graciliano senão aquelas que andam na boca de todo mundo; é um dos maiores romancistas novos do Brasil. Grande cultura a serviço de bela inteligência — Aqui damos o seu “por que amo a França”, apanhado por um dos nossos redatores.

Dom Casmurro,[2] 1937

 

Graciliano Ramos preferiu responder verbalmente. Estávamos na Livraria José Olympio e o romancista de Angústia atendeu à nossa pergunta, apontando risonhamente para os livros espalhados num balcão, diante de nós:

— Eu amo a França por isso…

Resposta vaga e precisa, ao mesmo tempo, e a que o nosso companheiro antepôs o ardil das insinuações, diante das quais Graciliano Ramos, com o seu hábito de falar poupado, foi compelido a ir discreteando longamente sobre a sua grande fascinação intelectual pela gente gaulesa.

— Os franceses certamente influíram bastante em sua formação literária…

— Sim. De França evidentemente recebi as primeiras sugestões propriamente literárias. Por uma questão de programa e de uso, sempre que o brasileiro deixa o curso primário, o primeiro livro que lhe vem às mãos são Os Lusíadas. A mentalidade da criança experimenta dificuldades terríveis para surpreender o pensamento do clássico.[3] Cria-se então a ojeriza pela epopeia e também pela literatura portuguesa. Em geral, prolonga-se essa aversão pelo resto da vida. Em tal circunstância, só há um recurso: refugiar-se na literatura francesa. Comigo, foi assim. Li primeiramente a chamada literatura de cordel, é certo que não o fiz por uma questão de estética e de enlevo, mas por uma exigência da curiosidade do adolescente. A língua francesa, direta, facilita os autodidatas, que somos todos nós, intelectuais brasileiros. Em pouco, familiarizei-me principalmente com os romancistas. Balzac foi para mim um deslumbramento. Ainda hoje me detenho diante de sua obra com a certeza de que me encontro com o maior romancista do mundo.

— Quer dizer que pensa como aquele homem exótico que Anatole France encontrou a revolver velhos livros num alfarrabista de Paris, e que dizia, gravemente, indicando as prateleiras: Balzac é um mundo…

— Evidentemente. Depois, Zola impressionou-me também, mas não conseguiu desviar a fascinação pela obra balzaquiana. Julgo ter sido verdadeiramente diabólica a mentalidade do autor das Ilusões perdidas. A propósito, acho que é este o seu melhor livro. Que surpresa de técnica! Ali há de tudo, desde a base econômica, admiravelmente definida e levantada, e sobre a qual o resto do livro cai, para consistência eterna. O resto do livro caminha impulsionado por aquela rajada até à surpresa daqueles pensamentos filosóficos que Balzac coloca na boca de um cura. Por isso, bastava apenas Balzac para que eu amasse intensamente a França. O escritor português que me deixou maior influência foi, em parte, francês: Eça de Queirós. O seu ritmo, a sua construção, o seu riso — tudo teve o seu berço sob o solo de Paris, muito embora ele construísse os seus volumes num hotel de Londres ou mesmo na ambiência sossegada de Leiria. A minha fascinação e o meu entusiasmo pela literatura francesa determinaram em mim quase um desconhecimento total do que se escreveu no Brasil. Basta lhe dizer que somente há uns dois ou três anos vim conhecer Machado de Assis.[4]

— Considera Machado de Assis um caso de genialidade?

— Certamente que não. Justifica-se esse meu ponto de vista por uma questão de educação literária, quando não fosse por um imperativo do temperamento. Meu espírito se formou numa ambiência de riso claro e vivo, como o de Anatole France. Ademais, o que mais me distancia de Machado de Assis é o seu medo de definir-se, a ausência completa da coragem de uma atitude. O escritor tem o dever de refletir a sua época e iluminá-la ao mesmo tempo. Machado de Assis não foi assim. Trabalhando a língua como nenhum, poderia ter feito uma obra transitável às ideias. Como vê, ainda é o amor à França que me faz discordar da maioria dos homens cultos do Brasil: não amo Machado de Assis. Entretanto, releio o Eça de Queirós, pelo que me transmite, harmoniosamente, do espírito francês.[5]

Nesse instante, vinha chegando Amando Fontes. Graciliano Ramos despediu-se, sorrindo:

— Parece que satisfiz a curiosidade de seu jornal…

Do livro Conversas, de Graciliano Ramos. Organização de Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 281-4.

______________________________
Notas:

[1] “De Graciliano Ramos”, Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 23 dez. 1937.

[2] “Evitar a burrice que aí anda”, esse o propósito do jornal literário semanal Dom Casmurro, fundado em maio de 1937 pelos gaúchos Brício de Abreu (1903-1968), seu diretor, e Álvaro Moreyra (1888-1964), redator-chefe. Também Moacir Deabreu, Marques Rebelo e Jorge Amado foram redatores-chefes desse periódico, que atingiu 50 mil exemplares por semana. Instalada a redação do jornal entre a rua do Ouvidor e a Cinelândia, no Rio de Janeiro, teve entre seus colaboradores: Joel Silveira, lançado por Dom Casmurro, Adalgisa Nery, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Lacerda, Cecília Meireles, Cícero Dias, Erico Verissimo, Gastão Cruls, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz, Santa Rosa. Dom Casmurro circulou até 1946, tendo o título e também a epígrafe inspirados no romance de Machado de Assis: “A confusão era geral”. Cf. LUCA, Tania Regina de. “O jornal literário Dom Casmurro: nota de pesquisa”, Historiae: Revista de História da Universidade Federal do Rio Grande, v. 2, pp. 67-81, 2011; LUCA, Tania Regina de. “Brício de Abreu e o jornal literário Dom Casmurro”, Varia Historia, 2013, v. 29, n. 49, pp. 277-301.

[3] Como Graciliano destaca em Infância (1945): “Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados — e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. Um desses barões era provavelmente o de Macaúbas […]. Deus me perdoe. Abominei Camões. E ao Barão de Macaúbas associei Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, o gigante Adamastor, barão também, decerto” (RAMOS, Graciliano. “O barão de Macaúbas”. In: Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 133).

[4] Em 1947, dez anos depois deste depoimento, Álvaro Lins destaca que, ao ser comparado com Machado, “o sr. Graciliano Ramos se defendeu com um argumento fulminante: que nunca havia lido antes Machado de Assis…” (LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: obras, autores e problemas da literatura brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira, 1963, p. 147). Todavia, vale relembrar que, em inquérito promovido pela Revista Acadêmica sobre “quais os dez melhores romances brasileiros”, Graciliano não deixaria de incluir Dom Casmurro (RAMOS, Graciliano. “Quais os dez melhores romances brasileiros — resposta de Graciliano Ramos”, Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 50, jul. 1940). Machado é também assunto de “Obras-primas desconhecidas do conto brasileiro”, Otto Maria Carpeaux. A Manhã, 1949, e da entrevista concedida a Marques Gastão, em 1952, recolhida em Conversas.

[5] Em fragmento inédito, presente no Arquivo Graciliano Ramos do IEB/USP, Graciliano sublinha a simultaneidade entre a elevação de Machado e o rebaixamento de Eça feito pela crítica brasileira: “Para deprimir Eça de Queirós foi necessário elevar em demasia Machado de Assis, que se tornou um gênio ultimamente oficializado numa vasta celebração. Cobriram-no de honras imensas e exegetas sutis explicam-lhe a obra imensa e desigual. […] Os patriotas da literatura contrapõem ao D. Casmurro o Conde d’Abranhos. Isto é cômodo e dispensa rigores de análise, que talvez nos fossem desfavoráveis. Certamente não se trata de literatura: trata-se de religião, de política. Mas é admirável que cidadãos afirmadores e crentes hajam elevado à categoria de símbolo um cidadão cético. […] Nunca se meteu em questões, e se algumas lhe apareceram, fez o que pôde para evitá-las. Teria sido certamente preferível que ele cultivasse e elevasse as grandezas contemporâneas. Mas como teria podido fazer obra de arte enaltecendo semelhante material, tão próximo, tão falho?” (FRAGMENTO de manuscrito. Instituto de Estudos Brasileiros; Arquivo Graciliano Ramos; Crônicas, Ensaios e Fragmentos; Série Manuscritos; caixa 025; not. 10.14).

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“Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão.”

em carta a Raúl Navarro, tradutor, nov.1937