Leo Vaz, um machadiano na antologia de Graciliano Ramos
Publicado em 28 d março d 2017
Por Ieda Lebensztayn
para o Aliás, do Estadão
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“Tratamos de assuntos graves, não nos ocupamos com tolices. Não amole.” Tal foi a resposta áspera de uma academia de letras, vejam só, para Graciliano Ramos, que a ela se dirigiu em busca de contos. Apesar do descaso pela cultura letrada no país, o autor de Vidas Secas se dedicou, nos anos 1940, a organizar uma antologia de contos das várias regiões do país, por encomenda da Casa do Estudante do Brasil.
Entrevistas e cartas de Graciliano atestam seu empenho por encontrar contos de todos os estados brasileiros. Interessavam-lhe criações de desconhecidos, desde o fim do século XIX, feitas em cidades, aldeias, atrás de balcões ou em casas-grandes, por pessoas de origens e posições sociais diversas. Quanto aos escritores consagrados, o propósito era dar a público ótimos contos, até superiores aos mais conhecidos. Conforme Graciliano relata no prefácio da antologia, pesquisou durante dois meses na Academia Brasileira de Letras e outros dois na Biblioteca Nacional.
Por problemas financeiros da Casa do Estudante do Brasil, os Contos e Novelas escolhidos por Graciliano Ramos saíram por essa editora postumamente, em 1957, e depois com o título Seleção de Contos Brasileiros, pela Ediouro. Três volumes compõem a antologia, organizada por regiões do país: volume I, Norte e Nordeste; volume II, Leste; volume III, Sul e Centro-Oeste. São um convite para o leitor se embrenhar na ficção curta brasileira, admirar a face do nosso grande escritor como pesquisador e conjecturar os critérios artísticos de suas escolhas de contos. Entre os escritores famosos estão Machado de Assis, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino etc. Sendo a edição posterior à morte de Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda nela incluiu o dolorosamente belo Minsk, antes publicado em Insônia (1947).
Dos escritores da antologia quase desconhecidos atualmente, quero destacar Léo Vaz. Seu conto A Rifa foi o escolhido por Graciliano. Em poucas páginas, vemos a sorte de um professor, ganhador de uma rifa, converter-se no azar de perder o salário de um dia, por ter sido flagrado na estação de trem como prevaricador pelo inspetor escolar: faltara ao trabalho devido aos atropelos da viagem em busca de uma sanfona. A ironia do conto acompanha a sucessão de dissabores desse pobre-diabo apreciador de música, que junto com uma sanfona ganhou uma dívida na rifa. Logo vem o eco ruidoso “conserto da concertina”: o bilhete da rifa anunciava, com a honestidade em letras miúdas, que cabia ao premiado pagar o conserto da sanfona e buscá-la em outra cidade.
Assim, A Rifa aponta a relatividade da vida, cujas vitórias podem significar derrotas, e vice-versa. E nos leva a pensar que muitas vezes, desconhecendo a história e nos fiando na face aparente da realidade, condenamos os outros com rótulos, como fez o inspetor contra o professor. Diante desse pobre-diabo, o leitor fica entre o riso e a compaixão. Aqui vem à mente o criador de Brás Cubas.
Num curioso elogio, Léo Vaz foi chamado de “Machado de Assis sem a gagueira” por Monteiro Lobato, em carta de 1920 ao amigo Godofredo Rangel. Foi Lobato o editor da literatura de Léo Vaz, que viria a ser colaborador por mais de trinta anos e diretor do Estado, havendo a editora José Olympio reunido esses escritos em Páginas Vadias (1957).
Num desses artigos, Léo Vaz (Leonel Vaz de Barros; 1890, Capivari – 1973, São Paulo) relata que, professor primário em Itápolis, ao passar férias em São Paulo em 1918 entrou para a imprensa, por intermédio de Oswald de Andrade, e foi recomendado a Monteiro Lobato, que o contratou para a Revista do Brasil e apostou em sua criação ficcional. Quase desconhecido hoje, Léo Vaz teve grande êxito: as três primeiras edições de seu romance, O Professor Jeremias, são de 1920. A sexta, 40 mil exemplares, veio a público em 1949 pela Coleção Saraiva. A mais recente é de 2001, da Fundação Casa de Rui Barbosa e Editora Bom Texto.
Veja-se que o protagonista de A Rifa é o mesmo professor Jeremias do romance. A leitura das duas obras permite conhecer a marca machadiana junto com a singularidade da obra de Léo Vaz, que deu voz a um pobre-diabo descendente da decadência de fazendeiro do café, o qual narra sua história para o filho, de quem foi apartado pelo ressentimento social da ex-mulher. A Rifa consta de Ritinha e Outros Casos, publicado em 1923 também por Lobato, e reeditado apenas em 1969, pelo Clube do Livro. Outra contribuição do escritor capivariano foi a tradução e adaptação do francês de O Burrico Lúcio (1951), baseado na versão atribuída a Luciano de Samósata, uma das referências de Machado de Assis.
Que a antologia organizada por Graciliano e o conto de Léo Vaz hoje destacado o levem, leitor, a seguir o conselho de Diderot presente na advertência de Papéis Avulsos (1882): escreva contos, pois “o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso”. Aliás, leia contos. O caderno traduz aqui o desejo de republicação e leitura da antologia e de seus vários contistas.
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