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Memórias do Cárcere, por Florestan Fernandes

Publicado em 20 d agosto d 1984

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo em 08 de agosto de 1984
Agradecimento especial à professora Ieda Lebensztayn pela localização deste artigo

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Há quantos anos li Memórias do cárcere? Não me lembro. Não seria preciso ter vivido sob o inferno do Estado Novo para sofrer o impacto da grandeza daquele livro, que vincula a criação artística exemplar à ira moral e política mais consequente. Os que falam de “literatura crítica” e de “arte engajada” quase sempre permanecem na periferia dos símbolos e na superfície da luta política. Graciliano Ramos travou o combate ao nível mais profundo da defesa da dignidade do eu e da condenação irretratável do despotismo institucionalizado. Temperamento e circunstâncias acenderam a chama do intelectual revoltado, gerando-se assim a única obra de denúncia integral e de desmascaramento completo existente em nossa literatura.

Não voltei a ler o livro. Nem agora, que senti um ímpeto irrefreável de incentivar os leitores a não perderem a sua transposição cinematográfica. O vigor do livro, na minha memória, prende-se à revolta íntima, ao afã de denunciar e de desmascarar além e acima dos limites do inconformismo ideológico e político, de buscar uma objetividade tão intransigente e penetrante que nos lembra a verdadeira ciência, no sentido de Marx. Ao sobrepujar seu rancor e as humilhações sofridas, o intelectual descobre o significado da prisão e da violência que imperam em toda a sociedade brasileira, de modo a identificar o microcosmo dentro do qual fora lançado como o limite mais brutalizado e esquecido do todo, mas, ao mesmo tempo, o mais expressivo e revelador. De um golpe, o Estado Novo e as várias franjas psicológicas, policiais, militares ou políticas da opressão mostravam-se no que eram, em sua realidade histórica específica e nas projeções que a soldavam ao passado escravista e colonial mais ou menos remoto e recente, ou seja, em sua realidade histórica “estrutural”.

Em um país no qual a descolonização foi confundida com a troca de guarda na casa reinante e com a monopolização do poder pelos estratos dominantes dos estamentos senhoriais, Memórias do cárcere balizava-me o aparecimento de uma nova consciência política da realidade nacional e de uma repulsa ao conformismo típica dos movimentos de rebelião, que iriam engravidar a história das nações proletárias. Constituía uma dificílima tarefa criadora transpor para a linguagem do cinema um livro como esse, que comoveu a Nação mas permaneceu ignorado pelos estudiosos do Brasil na sua perspectiva original mais elucidativa e provocadora, em ruptura com a “história oficial” e, especialmente, com as várias modalidades então existentes de “sociologia de gabinete” e de “ciência social acadêmica”. Pela segunda vez um escritor escrevia uma obra-prima dentro do seu métier (se se tomam Os sertões como paralelo), só que, agora, o produto transcendia à ordem existente como um todo e a punha em xeque. O cinema poderia responder dialeticamente a essa realização?

Só assisti uma vez ao filme de Nélson Pereira dos Santos e seus colaboradores (entre os quais a competência dos técnicos nada fica a dever à excelência dos atores). A impressão que me ficou, corroborada por uma longa reflexão crítica, levou-me à certeza de uma correspondência dialética efetiva. O filme opera com os três níveis do livro: o psicológico e da memória propriamente dita, que focaliza as ocorrências do dia a dia; o dos acontecimentos, no qual a história também se objetiva através da memória e da experiência direta com a realidade do Estado brutal, chocante e repulsivo, retrato da sociedade de que fazia parte e daqueles que a comandavam, para os quais ele constituía uma necessidade política; o da “repetição da história”, parcialmente visível através de ocorrências do cotidiano e dos acontecimentos, mas em sua maior parte matéria da análise crítica desmascaradora, pela qual a brutalização e bestialização do homem refletiam como a ditadura se incluía em uma cadeia de continuidades, que faziam do presente um espelho fiel do passado oligárquico, do passado escravista neocolonial e do passado escravista colonial, pretensamente desaparecidos. O que é preciso assinalar: o filme faz tudo isso pelas vias próprias do cinema, sem parasitar no talento de Graciliano Ramos e sem mimetizar o portentoso quadro de referências obrigatório.

Memórias do cárcere, na versão cinematográfica, explora mais desenvoltamente a linguagem artística e as possibilidades que estão ao alcance do cinema de fragmentar a realidade para, em seguida, recompor o concreto nos diversos níveis em que ele aparece na percepção, na cabeça e na história dos homens. Quem ama o livro por ele mesmo não vai recuperá-lo no filme. Quem ama as várias verdades que Graciliano Ramos enfrentou com hombridade e coragem, irá ver no filme uma engenhosa e íntegra transposição do livro. Seria pouco dizer que ambos se completam. Nélson Pereira do Santos explora a técnica cinematográfica como Graciliano Ramos a técnica literária, como recurso de descoberta da verdade, arma de denúncia intelectual e instrumento de luta política.

Como a “sua” situação histórica é datada de hoje, o alvo imediato é, naturalmente, a ditadura atual e as condições que lhe conferem uma substância colonial inocultável. Esse é o aspecto por assim dizer genial do filme. A atualidade das Memórias do cárcere não poderia estar em algo exterior, como o “acaso” de uma ditadura ainda mais racional no uso da corrupção, da opressão e da violência institucionalizadas. Portanto, terminar o filme com as sequências que foram escolhidas para esse fim representa uma solução magistral, que confere ao filme o mesmo sentido intelectual, moral e político do livro, a mesma força de uma indignação avassaladora. O que poderia ser ou parecer um presente extinto converte-se, afinal, em presente vivo e vivido com sofrimento, vergonha, desespero e revolta. Em suma, ele se evidencia como um presente colonial, que não desaparecerá por si só ou por uma impossível ação redentora dos que tecem as continuidades do despotismo. Sair das prisões não é vencer as ditaduras. Para acabar com elas, no solo histórico da América Latina, seria preciso destruir o arcabouço colonial no qual elas se assentam e lhes dão a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam…

Fernandes, Florestan. “Memórias do cárcere”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 ago. 1984, p. 3.

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Florestan Fernandes: sociólogo, ex-professor catedrático do Departamento de Ciências Sociais da USP e docente da PUC-SP. Autor de vasta obra sociológica.

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