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Graciliano Ramos e a revista Novidade: contra o lugar-comum

Publicado em 25 d abril d 2007

Da revista Revista Estudos Avançados – Scielo
Por IEDA LEBENSZTAYN
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RESUMO

Tendo por horizonte compreender a formação da obra de Graciliano Ramos, o cerne deste ensaio é a apresentação da revista Novidade (Maceió, 1931). O estudo dessa revista revela como o grupo nordestino ao qual Graciliano pertenceu se manifestou contra chavões na arte e na política. O romancista publicou na Novidade o capítulo24 de Caetés e as crônicas “Sertanejos”, “Chavões” (inéditas), “Milagres” e “Lampião”. Desde esses textos, Graciliano formalizou em toda a sua obra, de singular rigor estético e ético, o impasse da educação/das letras num mundo de violência, tema central da revista.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, Revista Novidade, Lampião, Modernismo.


ABSTRACT

Having as purpose to understand the formation of Graciliano Ramos’ work, the focus of this essay is the presentation of the magazine Novidade (Maceió, 1931). The study of this magazine discloses how the northeastern group which Graciliano belonged to took a stand against platitudes in the art and politics. The novelist published in Novidade the chapter 24 of Caetés and the chronicles “Sertanejos”, “Chavões” (unknown), “Milagres”, and “Lampião”. Since these texts, Graciliano formalized in all his work, of singular aesthetic and ethical rigor, the impasse of the education/of the letters in a world of violence, central subject of the magazine.

Keywords: Graciliano Ramos, Magazine Novidade, Lampião, Modernism.


ESTE ARTIGO é uma apresentação da revista Novidade, de Maceió, 1931, na qual Graciliano Ramos publicou algumas crônicas e o capítulo 24 de Caetés. Em meu doutorado, desenvolvo o estudo da Novidade, a partir da análise e interpretação dos textos de seus colaboradores, como Valdemar Cavalcanti, Alberto Passos Guimarães, Carlos Paurílio, Aloísio Branco, Willy Lewin, Diégues Júnior, Aurélio Buarque de Holanda, Santa Rosa. Sendo meu propósito compreender a formação da obra de Graciliano Ramos, interessa-me, junto com a leitura de Infância, conhecer esses escritores, o contexto histórico e histórico-literário da revista e as crônicas de Graciliano nela publicadas, anteriores aos romances. Assim, busco reparar o silêncio da historiografia literária quanto à Novidade e mostrar a importância dos textos de Graciliano nela publicados como matrizes temáticas e formais de sua obra.

Aproveito para agradecer ao Sr. Luiz Nogueira Barros, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, cuja generosidade foi fundamental para que eu obtivesse em 2003 a revista Novidade.

A partir de Caetés, o salto da precisão dramática das palavras

Romance de estreia de Graciliano Ramos, Caetés (1933) ora foi alvo de rejeição por parte da crítica (Álvaro Lins, Carlos Nelson Coutinho), como se marcado por pitoresco e pela desarticulação entre o conflito central do protagonista e os chamados “quadros de costumes”, ora foi avaliado (especialmente por Antonio Candido), em seus defeitos e conquistas formais, como passo inicial para o amadurecimento do autor. Com vistas a compreender a formação da obra do escritor, em meu mestrado (Lebensztayn, 2003) apreendi a funcionalidade de Caetés analisando a representação das relações sociais e a construção irônica estabelecida com a imagem dos índios. Aparentemente pitorescos e desvinculados da ação central, os “quadros de costumes”, no entanto, revelam a realidade de maroteiras, mentiras e usurpação em que tem lugar a trajetória arrivista do narrador-protagonista João Valério. Recorde-se, por exemplo, a significativa figura do bacharel Evaristo Barroca: foi mestre em falsidades e rasteiras para vencer como político. De modo paralelo, também Valério, descendente de aristocratas e guarda-livros protegido do patrão, traiu a confiança desse, ao tomar-lhe a esposa como amante: provocou-lhe o suicídio, até ocupar sua posição social.

Então, sobre tais figuras da classe dominante parasitárias recai a ironia de Graciliano Ramos, por meio da construção feita com a imagem dos índios. Ao fim de seu percurso vitorioso, João Valério abandona a ideia de escrever um romance histórico sobre os caetés, alegando ser inconveniente a literatura para um negociante, mas se afirma um caeté. Nessa autoidentificação do arrivista com os índios, sobretudo usando o argumento ideológico da preguiça e inconstância em comum, depreende-se a ironia criada pelo escritor, que combate os estereótipos. Ao contrário dos caetés, cuja “preguiça” – resistência à escravização – significou a dizimação (foram vitoriosos tão só no episódio de 1556 do bispo Sardinha), Valério é o vencedor, cuja preguiça se regozijou da usurpação do lugar do proprietário comercial. Canibal numa civilização assentada sobre barbárie, hábil em maroteiras disfarçadas (“um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora” (Ramos, 1955b)), ele está muito distante das condições dos índios remanescentes, pobres-diabos degenerados e bêbados, miseráveis.

Percebi, pois, como a composição de Caetés, no plano da representação das relações sociais e no da configuração simbólica por meio da imagem dos caetés, revela criticamente a lógica dos dominantes brasileiros – pautada por discursos falsamente democráticos e pela exclusão de muitos, como os índios (veja-se a miséria dos remanescentes e o genocídio no passado), – e aponta sua origem na formação colonial escravista do país.

Segundo minha leitura, portanto, a ambiguidade que constitui Caetés é advir do viés de um narrador de fisionomia social específica – o aristocrata decadente, guarda-livros arrivista, temeroso e protegido no círculo dos dominantes, que vence mediante safadezas e foge de dilemas -, o qual não tem motivos para escrever. Daí decorrem a coerência e a força do romance como representação histórico-social e certa fragilidade por não expressar um conflito subjetivo. A constituição irônica de Caetés, recaindo sobre a ausência de conflito subjetivo do narrador-protagonista, garante o sentido crítico do romance e lhe dá um tom geral de frieza (“absoluta ausência de dós de peito”, no dizer de Antonio Candido (1992a, p.13-70). Valério afirma-se “incapaz de sofrer por muito tempo” (cap.30), não sustenta conflitos por ter magoado Luísa (“ídolos que depois derrubo”, cap.31), nem por ter contribuído para a morte de Adrião (“Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa…, cap.31).

Numa depuração a partir de Caetés, a força artística dos romances posteriores de Graciliano deriva exatamente de que a representação crítica das relações sociais se constrói junto com a expressão de dramas subjetivos. Ao receber em 1942 um prêmio pelo conjunto de sua obra e uma homenagem, Graciliano a dedica aos protagonistas de S. Bernardo, Angústia e Vidas secas – que, “estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento” (Ramos, 1943, p.29-30) – e deixa de lado o de Caetés. Considerando Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano as “figuras responsáveis pelos seus livros”, diz-se mero “aparelho registador” dos sofrimentos deles, para solidarizar-se com “todos os infelizes que povoam a terra”. Assim, entende-se por que o escritor omite da homenagem o protagonista Valério, ele sim um “aparelho registador” para quem não há a necessidade nem condições de escrever um romance sobre si mesmo. Já para os protagonistas das obras posteriores de Graciliano, incluindo os livros de memórias, o que impulsiona as narrativas é “a desgraça irremediável que os açoita”, exigência ética da verdade de sua arte.

Desse modo, entendo que, no amadurecimento formal de sua obra, Graciliano Ramos equacionou a força de representação realista e a construção irônica, já presentes no romance de estreia, a uma expressão1 subjetiva mais contundente de seus narradores – porque nascida de impasses e por eles limitada -, num tom nem de frieza, nem de derramamentos.

Caetés e a revista Novidade: o resgate dos esquecidos

O capítulo 24 de Caetés traz elementos fundamentais para se compreenderem a construção do romance e a caracterização específica do narrador-protagonista. Guarda-livros, a um tempo dependia da proteção do patrão Adrião Teixeira e lhe prestava favores, como a maroteira de “encoivarar” partidas na firma comercial. Traindo-o com Luísa e almejando-lhe a posição social, Valério confessa que “seria uma felicidade” a morte do patrão, mas se mostra incapaz de descerrar criticamente a si mesmo as intenções e os limites da própria consciência e dos próprios sentimentos. Assim, esse arrivista representa um mecanismo historicamente configurado no grupo dos dominantes de que faz parte: bárbaro envernizado, além de “nunca ousar descobrir a si mesmo o fundo do seu coração”, suas ideias “flutuavam sempre”, ao sabor dos interesses e sem uma base própria, apoiando-se na opinião alheia, admirando as frases brilhantes e filósofos desconhecidos. Em tal caracterização está o que há de pior no “homem cordial” estudado por Sérgio Buarque de Holanda (1963): o “viver nos outros”, a indistinção entre os domínios do público e do privado, a insuficiência para se elevar a produzir “qualquer moral social poderosa”.

Também no capítulo 24, configurando o caráter flutuante de João Valério protagonista e narrador, está seu desinteresse por estudar história para terminar o romance sobre os caetés. Ele desmascara não só sua incapacidade para dedicar-se com esforço e com paciência à prática de ler e de refletir, mas também a inutilidade de ser instruído em seu ambiente. Como bom descendente de aristocratas, avesso ao trabalho braçal, Valério se projetava intelectual em busca de renome, mas não exercia um trabalho de fato com os livros. Não foi escritor de um romance histórico sobre os índios, nem propriamente de um romance sobre sua vida, entretanto realizou suas ambições econômicas aproveitando-se do alheio. Assim, Caetés manifesta o drama de Graciliano: o impasse da educação num ambiente fundado em violência e em que se vence via safadezas.

Significativamente, esse mesmo capítulo 24 de Caetés foi publicado em 6 de junho de 1931 (dois anos antes de sair o romance), no número 9 da revista Novidade, semanário de Maceió que permanece há 76 anos desconhecido da historiografia literária brasileira.

Por recomendação de Erwin Torralbo Gimenez, estudioso com quem partilho a predileção pela obra de Graciliano, li os artigos de OEstado de S. Paulo, de 14 de outubro de 2001, “A invenção do País pelo regionalismo nordestino”, de Luiz Costa, e “Grupo rejeitava literatura pitoresca”, do historiador e professor da Universidade de São Paulo (USP) Elias Thomé Saliba. Neles deparei com a existência dessa revista desconhecida, que me despertou grande interesse, por trazer a manifestação do grupo de escritores nordestinos ao qual Graciliano pertenceu (Jorge de Lima, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, Santa Rosa, Alberto Passos Guimarães, Valdemar Cavalcanti) e crônicas inéditas do romancista. Antonio Candido já chamara a atenção para a necessidade de se estudar esse grupo de autores, cuja postura crítica de fato marcou a literatura dos anos 1930.2

Meu entusiasmo em princípio esfriaria, pois a perspectiva de ver a revista Novidade se mostrava remota. No entanto, após muitos percalços,3 graças ao Sr. Luiz Nogueira, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, obtive o material em 2003. Logo me surpreendeu constituir-se a revista Novidade de 24 números, cada qual com dezesseis páginas. Apesar de não ter durado sequer um ano (de 11 de abril a 26 de setembro de 1931), o fato de ser semanal garantiu-lhe considerável quantidade de exemplares. Elias Thomé Saliba já sublinhava tal fato, levando em conta a efemeridade das revistas modernistas. Observe-se, por exemplo, que Klaxon, de São Paulo, a primeira revista modernista, de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, dentre outros, durou nove números (1922), e A Revista, de Belo Horizonte, de Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, João Alphonsus, Pedro Nava, Abgar Renault, publicou três números (1925-1926).

Com satisfação, dediquei-me à leitura dos textos da Novidade e à preparação de um índice, o que me permitiu identificar, no corpus bastante variado da revista, uma estrutura e alguns temas recorrentes. Quanto à estrutura, compõe-se de: editorial, o chamado “artigo de fundo”; expediente e tópicos; uma sequência de textos, podendo incluir artigos sobre política, contos, crônicas, ensaios de crítica literária ou teatral; a seção de poemas; fotografias; crítica e notas de cinema; notas da semana; sociedade (“moda”, “registo de aniversários”, “festas”) e anúncios.

Quanto aos temas, a Novidade é reveladora dos problemas sociais nordestinos e brasileiros e da insatisfação que perduraram após a Revolução de 1930. Desnuda em suas várias faces uma realidade de miséria: a violência do cangaço, a indústria das santas milagreiras, o analfabetismo, a política personalista, a necessidade de reforma da Constituição.

Veja-se, então, o lema que desponta na revista, como a sintetizar os motivos por que conhecê-la: “Novidade não é essencialmente literária nem essencialmente política”. Preenchendo uma lacuna da historiografia da literatura brasileira, o resgate da Novidade permite relativizar não só possíveis divisões bruscas entre “projeto estético” e “projeto ideológico”, como também uma decorrência estrita do romance de 30 em relação ao modernismo de 22 ou ao regionalismo de Gilberto Freyre.4 E são pressupostos dessa reflexão: a compreensão da arte como amálgama do estético com o social e a atenção respeitosa ao caminho pessoal de formação dos escritores, em seu tempo e em seu ambiente de origem.

Nesse sentido, a atenção sobre a revista Novidade preenche também uma lacuna quanto ao conhecimento da obra de Graciliano Ramos. Possibilita entender o momento em que ele escreveu e o modo como sua literatura sobressai em relação à geração nordestina. Se a Novidade se deseja como reação crítica ao lugar-comum da violência, aos estereótipos, à retórica dos bacharéis e políticos e expõe como problema o papel do intelectual num mundo de barbárie, os textos de Graciliano nela publicados, anunciando a obra posterior, são sua melhor expressão.

Leitora de Graciliano Ramos, é-me inevitável apreciar na Novidade a primeira edição do capítulo 24 de Caetés e das crônicas “Sertanejos”, “Chavões” (inéditas para o público atual), “Lampião” e “Milagres” (publicadas respectivamente em Viventes das Alagoas e Linhas tortas). Esses textos, como se nota nos títulos, marcam-se pelo empenho de representação crítica da realidade histórica, próprio da geração da revista. Ao mesmo tempo, destacam-se pela expressividade do emprego de ironias e do estilo conciso, peculiares ao escritor, frutos da constante reelaboração linguística. Conforme adiante demonstrarei mais detidamente, julgo bastante significativo perceber como essas crônicas de 1931 prenunciam os romances. Já em algumas expressões linguísticas (“apanhar do governo não é desfeita” surge em “Lampião” e depois em Vidas secas) e, sobretudo, no esboçar de personagens para além de estereótipos (Paulo Honório, de S. Bernardo, insinua-se em “Sertanejos” e em “Lampião”), entrevê-se a configuração do impasse do intelectual num mundo em que parece vedada a possibilidade de mediações. Tal drama, delineado ante a realidade histórica apreendida nas crônicas de 1931 e em Caetés, formaliza-se em sua densidade nos romances subsequentes e atinge depuração expressiva máxima, como verdade da formação pessoal do escritor, em Infância (1945).

“Cartão de visita”

Como um manifesto, o “Cartão de visita”, primeiro editorial da revista, de 11 de abril de 1931, escrito por Valdemar Cavalcanti (1931, p.1), explica que a Novidade surgiu da necessidade de a geração combater o “tradicional comodismo de atitudes”, a herança romântica, o ceticismo renaniano e a ironia anatoliana, para assumir uma postura crítica ante a realidade:

Sobre essa geração de hoje – uma geração de vinte-anos desencantados – sobre a nova geração intelectual de Alagoas recai a responsabilidade de cometer loucuras. De afirmar-se, de ter convicções. É preciso abafar o platonismo com que poderíamos ficar tecendo sonhos cor-de-rosa, em detrimento das realidades da vida.

Valdemar Cavalcanti conclama os moços e também “muitos trinta-anos independentes, gente a quem os horizontes novos fizeram exilar-se de sua própria geração” (Graciliano Ramos e Jorge de Lima contavam então com trinta e oito anos), a não abafarem seus “gritos de idealismo”. Assim, delineia a Novidade como porta-voz dos “esforços dispersivos” de jovens de talento e espírito crítico. Significativamente, aponta como programa da geração ponderar sobre os erros e as virtudes dos antepassados. Em sua argumentação, cita Psichari, Nabuco, um “ensaísta brasileiro” e o “avô Renan”. Para bem compreender essas referências do “Cartão de visita”, faz-se necessária a leitura de “Apologia pro generatione sua”, palestra de Gilberto Freyre (1941) realizada na Paraíba em 5 de abril de 1924. Descobri ser ele o “ensaísta brasileiro” a que alude Valdemar Cavalcanti: nessa “Apologia”, Freyre apresenta à sua geração de desencantados do pós-guerra o exemplo dos adolescentes de 1914 – os franceses Ernest Psichari, neto de Ernest Renan, Charles Péguy, Jacques Maritain, o italiano Giovanni Papini, o americano Randolph Bourne -, que “não passaram pela vida como turistas”.

É relevante notar como a evocação de Psichari, simbolizando o intelectual que se sacrifica pelos seus ideais, norteia a responsabilidade de participação na vida assumida pela geração da Novidade. Ao lado de Psichari, que morreu na Primeira Guerra, outro escritor afigura-se forte influência para os intelectuais da revista nordestina: Erich Maria Remarque. Conhecendo de perto o horror da guerra, expressou com contundência o sem sentido de jovens matarem-se em nome do poder de suas pátrias. Seu romance Sem novidades no front (Remarque, 1951, 2004) desnuda a guerra como perda total da experiência e parece perguntar, provocando comoção intensa, como sobreviver ao lugar-comum da destruição e da morte. Configura o paradoxo entre a necessidade e a impossibilidade de narrar, tão bem apreendido por Walter Benjamin (1993, p.115, 198). O livro, de 1929, e o filme nele baseado (All quiet on the western front), vencedor de Oscar em 1930 e veiculado nos cinemas de Maceió em 1931, são matéria recorrente da revista alagoana. Assim, a Novidade, acompanhando o sentimento do pós-Primeira Guerra, insinua-se como desejo de renovação ante o lugar-comum da violência e das injustiças, sobretudo em termos da realidade brasileira. 5 Eis que esse viés de filiação da revista às inquietações da guerra integra a tendência da literatura moderna nordestina de desmascarar os problemas sociais.

A terra dos “meninos impossíveis”

Além de Graciliano Ramos, outros intelectuais e artistas hoje consagrados participaram da Novidade. José Lins do Rego, que já conhecera Gilberto Freyre e residia nos anos 1930 em Maceió (onde escreveu Menino de engenho), e, em especial, Jorge de Lima exerceram grande influência sobre os jovens colaboradores da Novidade, levando-lhes as tendências regionalista e modernista. Tanto que esses foram chamados de “meninos impossíveis”, por causa de “O mundo do menino impossível”, primeiro poema moderno de Jorge de Lima, de 1927, impresso no Rio de Janeiro e dedicado a Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Manuel Bandeira (Sant’Ana, 2003; Rocha, 1964). O menino do poema quebra os brinquedos antigos, importados (como versos parnasianos), para buscar, sozinho, sua criação autêntica, aplicando o faz-de-conta aos objetos de seu ambiente (tradição).

Já se indicia aqui como o conhecimento do contexto social e cultural da Novidade e a análise dos textos de seus colaboradores permitem relativizar divisões bruscas entre modernismo do Sul, regionalismo nordestino, literatura social / introspectiva. O estudo da revista abre a possibilidade de evitar generalizações e buscar compreender um período histórico e histórico-literário e suas singularidades artísticas, com respeito crítico. Afigura-se como ideal proceder ao “afinamento das categorias sociais e culturais à procura da quadratura do círculo que seria a definição de indivíduo” (Bosi, 2002, p.7-53).6

E são vários os escritores da Novidade. Colaboraram com ensaios José Lins do Rego (“O último livro do Dr. Plínio Salgado”, “O Brasil precisa de Catolicismo”) e Jorge de Lima (“Nota religiosa”, “Padre Feijó”). Murilo Mendes enviou de Belo Horizonte para o amigo Jorge de Lima poemas inéditos (“O repórter atrás da grade”, “A namorada do pintor”). O crítico Álvaro Lins publicou a crônica “Vida das ruas, um cronista russo etc.”, o poema “Infância” e o conto “Renúncia”. O professor, filólogo e contista Aurélio Buarque de Holanda contribuiu com os poemas “Noite” e “Silêncio”. E o pintor Santa Rosa Júnior – que viria a ser o revolucionário criador das capas dos livros de Graciliano e de tantos escritores da Editora José Olympio no Rio de Janeiro a partir de 1934 – escreveu os poemas “Momento”, “Memória” e “Bucólico”.

Hoje menos conhecidos, Valdemar Cavalcanti e Alberto Passos Guimarães foram os fundadores e diretores da Novidade, responsáveis alternadamente pela autoria de seus editoriais.

O jornalista e crítico literário Valdemar Cavalcanti, autor de Jornal literário (1960), era amigo de Graciliano. Tanto que o romancista, no Rio de Janeiro em 1937, saído da prisão e escrevendo A terra dos meninos pelados, perfeita criação antiestereótipos, manda lembranças a ele nas cartas à esposa Heloísa. Afetuosamente, Graciliano Ramos (1992, p.173) se refere a Valdemar e a outros companheiros do tempo da Novidade (o mencionado Aurélio Buarque, Diégues Júnior e Barreto Falcão) como “meninos pelados”. Lembre-se também de que Valdemar Cavalcanti, e Aurélio escreveram as primeiras leituras críticas sobre Caetés, publicadas em 1933 no Boletim de Ariel do Rio de Janeiro (Candido, 1992b, p.92-101).

Os editoriais de Valdemar Cavalcanti marcam-se por sua revolta contra a barbárie, crua ou envernizada. Vejam-se alguns títulos: o já citado “Cartão de visita”, “Lampião”, “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”, “Os técnicos da Segunda República”, “Nós somos mesmo do amor”, “Aristarco, filhos e netos”. Destaca-se o fato de questionar os estereótipos atribuídos ao brasileiro: repudia sobretudo a falsidade da visão eufórica de Afonso Celso (Porque-me-ufano-do-meu-país, 1900), e desagrada-lhe o retrato sombrio criado por Paulo Prado (Retrato do Brasil, 1928). Desvela que a imagem do brasileiro como romântico, melancólico, apático serviu de justificativa para a falta de ação política na Primeira e na Segunda Repúblicas.

No próprio estilo de Valdemar Cavalcanti, equilibrado entre correção formal e coloquialismo, preocupado com sinceridade e clareza, reconhece-se que a formação de um pensamento crítico e o combate às iniquidades alarmantes da sociedade alagoana constituem o sentido cultural e político da renovação almejada por esse criador da Novidade.

Alberto Passos Guimarães, financiador da revista, colaborou, junto com Jorge Amado e com Santa Rosa, para a publicação de Caetés, sendo-lhes dedicado o romance. Escreveu, entre outras obras, Quatro séculos de latifúndio (1963) e A crise agrária (1979) (Barros, 2000). São seus editoriais na revista: “País essencialmente agrícola”, “Também sobre política”, “Espírito brasileiro e espírito revolucionário”, “Novos e velhos”, “A última geração de burgueses”, entre outros. Ele condena a mecanização do mundo, origem da fome de muitos, o caráter impolítico do Brasil, a literatice bacharelesca, a crença nacionalista no país como terra de milagres.

Em linhas gerais, depreende-se dos editoriais da Novidade a crítica ao imperialismo e aos problemas da realidade política e social brasileira, daí seu valor histórico. Seus autores queriam que os jovens alagoanos se concentrassem nas realidades da vida, combatendo estereótipos ideológicos. Documentos reveladores dos anos 1930, os editoriais têm grande atualidade.

Para completar o conhecimento da revista alagoana, convém distinguir entre seus participantes aqueles que, embora pouco conhecidos, escreveram textos relevantes (dos quais a seguir destaco alguns) e tiveram papel representativo na cultura brasileira: o contista e poeta Carlos Paurílio (“O caso pungente do 17”, “Olhos verdes”), o ensaísta e poeta Aloísio Branco (“Berceuse para embalar o mundo”), o sociólogo e antropólogo Manuel Diégues Júnior (“A propósito de guerra”), o folclorista Théo Brandão (“Folk-lore e educação infantil”), o poeta e cronista Willy Lewin (“T. G. 13”), o cronista Raul Lima (“A Revolução e o Álcool. Da influência da aguardente na evolução política do Brasil”). A singularidade artística e intelectual desses escritores merece ser conhecida.

Por fim, repare-se como a revista revela o convívio, para a mocidade de Alagoas, da atração pelo moderno (patente nas críticas de cinema) com a consciência crítica de que nada será novo enquanto persistir o quadro de miséria. A referência às sirenes que, insuportáveis, anunciavam as sessões de cinema sinaliza que o novo como tecnologia é ruído ante as carências da realidade.

De modo geral, as questões a partir das quais se constituiu o olhar crítico dos autores da revista Novidade e a que Graciliano deu forma literária são: a) a seca, a fome, a falta de instrução, a exploração do trabalho e, por conseguinte, a violência do cangaço, o fatalismo, a crença nos milagres, o temor ao governo como autoridade máxima; b) a retórica bacharelesca e o lugar-comum da política personalista após a Revolução de 1930; c) a necessidade de uma nova Constituição e de uma reforma na educação.

Quanto aos temas, o leitor da Novidade, orientado pelos editoriais de Valdemar Cavalcanti e de Alberto Passos Guimarães, pode refletir sobre política, a partir de textos como “Carta a um antigo correligionário político” (Lima Júnior), “Alberto Torres e a Constituição” (Paulino Jorge), a série “Problemas de hoje” (Arnóbio Graça), “O Novo Menu Político” (Barreto Falcão). Junto com os artigos sobre política, sobressaem estes sobre educação: “As nossas ‘enquetes’ – A instrução pública em Alagoas”, entrevista com o Dr. Miguel Baptista, diretor da Instrução Pública em Alagoas, e “A Reforma do Ensino”, de Álvaro Dória.

Vinculada às questões de política e de educação, a atuação de dois tipos de figuras no Nordeste reitera-se como assunto da revista: as santas milagreiras e Lampião. Figuram em notas esparsas (“A industrialização do milagre”, “A Santa de Tigipió”, a “Santa de Coqueiros”, “O aventureiro do cangaço”, “Lampião em cena”), em editoriais (“Lampião”, de Valdemar Cavalcanti), numa entrevista criada no número 6 (“Lampião entrevistado por Novidade“) e, como temas, nas crônicas de Graciliano Ramos (“Milagres” e “Lampião”).

A figura de Lampião era tão marcante nos anos 30, que na Revista Nova (1931-1932) de São Paulo, dirigida por Mário de Andrade, Paulo Prado e Antônio de Alcântara Machado, Mário de Andrade (1963) escreveu, sob o pseudônimo de Leocádio Pereira, o “Romanceiro de Lampeão”. Note-se que, contemporânea da Novidade, como essa a Revista Nova se voltava contra a literatura como retórica, desejo de brilhar pelas palavras, e contra o “imenso atraso intelectual” brasileiro (Kreinz, 1979).

Com base na mesma atmosfera social da Novidade, Jorge de Lima (1997), no romance Calunga (1935), utilizou-se das figuras de Lampião e de um santo milagreiro para denunciar a miséria dos trabalhadores da lama. Esses temas tão presentes na revista também aparecem em obras literárias posteriores, como os romances Pedra bonita (1938) e Cangaceiros (1953), de José Lins do Rego (1979, 1953), e a peça Lampião (1953), de Rachel de Queiroz (1989).

Tais problemas político-sociais, particularmente de educação, relacionados a Lampião e às santas milagreiras (essenciais no contexto nordestino dos anos 1930, conforme se descortina na Novidade) ganharam forma artística nos romances de Graciliano, não por meio da mera representação direta dessas figuras.

Já nas crônicas de Graciliano publicadas na Novidade (1931), apreende-se não só o espírito crítico característico dos colaboradores da revista, mas também o diferencial da expressividade irônica do escritor. O combate ao lugar-comum, peculiar à geração alagoana, marca o estilo do romancista, de singular rigor estético e ético, como se revela na crônica inédita “Chavões” e conforme certeiramente definiria Otto Maria Carpeaux (1999, v.I, p.443-50) no ensaio de 1942:

Quer [Graciliano] eliminar tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas, o lugar-comum das frases feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo. Para guardar apenas o que é essencial, isto é, conforme o conceito de Benedetto Croce, o “lírico”.

Nessas crônicas, preparação para os romances, configura-se o impasse da educação/das letras num mundo em que parece impossível escapar à violência (“Lampião”) e às iniquidades sociais, mistificadas por estereótipos (“Sertanejos”), por fatalismo (“Milagres”) e por uma literatura de lugares-comuns (“Chavões”). Os problemas contra os quais Graciliano se volta por meio da singularidade da criação literária são a violência e a miséria convertidas em lugar-comum. Ele recusa o fatalismo em relação à natureza (a seca) e aos poderosos (o governo, aos olhos de Fabiano, em Vidas secas; Julião Tavares, aos olhos de Marina abandonada grávida, em Angústia). Assim, ao identificar tipos sociais nas crônicas, o escritor entrevê conflitos neles, base para a construção das personagens dos romances e da voz singular dos livros de memórias.

Dessa forma, o estudo dos autores da Novidade (1931), contrários aos chavões na política e na arte, ao lugar-comum da violência, acolhe uma necessidade intelectual e crítica que permanece atual. Nesse contexto, destaca-se a permanência artística da obra de Graciliano Ramos, feita de rigor estético e ético – respeito às diferenças, de palavras, de individualidades.

Lampião de palavras

O motor da crônica “Lampião” (Ramos, 1931, p.3) é a ambivalência de Graciliano entre o sentimento de revolta contra as injustiças, que o faz identificar-se com a figura do bandoleiro, e, ao mesmo tempo, a consciência dilacerada de ser inútil como escritor, pois o universo letrado o distancia da ação do cangaceiro. Ao identificar-se com Lampião, como na crônica “O fator econômico no cangaço” (Ramos, 1962, p.123-9), o escritor explicita a origem social dos sertanejos famintos, alguns dos quais se fazem Lampiões: o sofrimento de injustiças, a exploração do trabalho no eito, as humilhações pelo soldado, a prisão, o fatalismo resignado ante o coronel e o governo.

No começo da vida sofreu [Lampião] numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada, de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o conduzia para a cadeia da vila. Aí ele agüentava uma surra de vergalho de boi e dormia com o pé no tronco.

As injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar do governo não é desfeita. (Ramos, 1931)

Como não ver, nessa caracterização, a “vida agreste” de Paulo Honório, protagonista de S. Bernardo (1934), que “sofreu sede e fome” antes de assumir a “profissão” de “explorador feroz” (Ramos, 1955c, cap.19, 3, 2, 36) dos trabalhadores do eito como ele o fora?

Até os dezoito anos gastei [Paulo Honório] muita enxada ganhando cinco tostões por doze horas de serviço. […] Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações comerciais de armas engatilhadas. (Ramos, 1955c, cap.3, p.14-5)

E, sobretudo, o quadro de miséria e opressão que transforma pobres-diabos em bestas-feras anuncia a situação de Fabiano, protagonista de Vidas secas (1938), que, depois de preso injustamente e espancado, chega a sonhar-se um cangaceiro e pensa que “apanhar do governo não é desfeita”.

Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia [Fabiano] perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: – “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita”. (Ramos, 1989, p.33)

Assim, a ponte entre a crônica sobre Lampião e os romances de Graciliano permite compreender melhor a construção das personagens Paulo Honório e Fabiano e de seus dramas. Para Lampião, segundo a crônica, a única saída foi a violência: resistir vivo era vingar-se contra o mundo dos proprietários, queimando fazendas, inspirando terror. Já Paulo Honório, após sofrer sede, fome e exploração, vingou-se, mas contra si mesmo, conforme tarde percebe: roubou, matou e fez-se proprietário dominador, até sentir a impotência de não haver compreendido Madalena e ter-lhe causado o suicídio. Quanto a Fabiano, seu arrivismo é ser retirante, sobreviver fugindo às secas. Sofre com o desejo de se tornar um cangaceiro, capaz de vingar-se do soldado amarelo que o humilhara: tem apenas a família e o temor de prejudicar-se ainda mais se desrespeitar a autoridade.

No segundo momento da crônica, Graciliano lastima a própria covardia de sujeito letrado, se comparada à força de Lampião. Deixa entrever-se o impasse do intelectual brasileiro, que tem sentimento de culpa por sua impotência em meio às iniquidades do mundo. Tal impasse ganhou formalização plena em Angústia (1936),7 em que o funcionário e intelectual Luís da Silva se pretendeu um cangaceiro e matou o bacharel e negociante Julião Tavares. Irmanando-se a milhares de “figurinhas insignificantes” (Ramos, 1955a), dentre as quais os cangaceiros (como Cirilo de Engrácia, morto), desejava vingar-se das humilhações que lhe imputavam os donos de dinheiro e de propriedades: perdeu Marina para o rico Julião, escrevia nos jornais obedecendo às ideias e aos interesses alheios. Contudo, a vingança contra um só proprietário não dissolve e sim intensifica a angústia de Luís da Silva.

Ao fim da crônica “Lampião”, do movimento de identificação e distância em relação ao cangaceiro, Graciliano insinua que a vingança contra as injustiças sociais, perpetrada pelo bandoleiro por meio da violência, talvez seja possível também pela literatura, pela educação, desde que autênticas. Aqui, inevitavelmente eu me remeto a Infância, logo ao primeiro capítulo.

Criando formas a partir das “Nuvens” (Ramos, 1953) da memória, a primeira recordação de Graciliano é um vaso de pitombas, que remetem às laranjas vistas no pátio da escola, erroneamente chamadas de pitombas pelo menino. Já aí figura bela síntese da poética, essencialmente ética, do escritor. A repreensão por considerar pitomba todo objeto esférico rendeu-lhe o aprendizado de avaliar com respeito as semelhanças e as diferenças entre as palavras, entre os seres: “a generalização era um erro”.

De fato, no percurso de Infância, o esforço para distinguir as palavras, seguindo a lição de “Os astrônomos”, que leem o céu, permitiu-lhe vingar, vencendo o estigma de ser “bruto em demasia”. As pitombas, mudadas em laranjas, estavam no pátio da escola que serviu de pouso na sua viagem com os pais e as duas irmãs para o sertão de Pernambuco. E a aula de bê-á-bá surge logo nesse primeiro capítulo, a condensar o percurso de Infância: as enormes dificuldades e os ganhos raros que formaram Graciliano, no aprendizado de ler e entender a realidade, combatendo estereótipos. Também em “Nuvens”, quando o adulto reconstitui a historieta cantada pela sua mãe, do menino que se vinga de injustiças mediante violência, conhece-se o afastamento do escritor em relação a esse heroísmo de ações enérgicas.

Em Infância está o sentido de vingança em que se formou o romancista. Preso à realidade de violência, a fuga para a imaginação, o esforço de decifração das letras e a mediação pela literatura foram sua vingança, no sentido etimológico de libertação.8 Do diálogo do adulto com as perplexidades, impressões e pensamentos do menino, sobressaem os componentes dessa vingança pela literatura: a sensibilidade, a consciência histórica e a potencialidade crítica de construir mundos reunindo palavras.

Notas

1 Um de meus pressupostos críticos é, aprendido de Alfredo Bosi (1991), a compreensão da literatura como tripé das dimensões de construção, representação e expressão.

2 “Não sei se este conjunto de autores já foi estudado de maneira sistemática. Se não foi, deveria ser, porque representa um fato importante da sociabilidade literária, considerada como estímulo à produção e à formação de juízos críticos – o que significa que pode ter influído na própria natureza do discurso que se elaborava ou se projetava a partir de Maceió” (Candido, 1992b, p.92).

3 No encalço da revista Novidade, experimentei várias decepções. Segundo indicava O Estado de S. Paulo, o material se encontrava no Instituto Histórico e Geográfico de Penedo, Alagoas. Contudo, existe apenas a Casa do Penedo – e não Instituto Histórico -, e sua funcionária nunca ouvira falar sobre a revista. Então, busquei informações no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Maceió. Concordo que havia uma feição de piada em perguntar, por telefone, à atendente do Instituto, se conhecia a Novidade, revista de Maceió de 1931. Embora eu aludisse à participação de Graciliano Ramos e de Jorge de Lima nesse semanário e enfatizasse meu interesse em estudá-lo, a resposta surgia imediata: nenhuma Novidade. Eis que o acaso da escolha do nome de Luiz Nogueira no site da Academia Alagoana de Letras veio perturbar minhas desilusões quanto às possibilidades de pesquisa e educação no Brasil. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, o Sr. Luiz Nogueira, em conversa telefônica, logo se prontificou a providenciar o material para mim. Ainda uma vez eu me decepcionaria, com a notícia de que a revista havia desaparecido quando foram fotocopiá-la. Mas não se tratava de sumiço, e sim da apreensão de pesquisador do Sr. Luiz, temeroso de que o processo de cópia destruísse o original, esfacelado pelo tempo. Finalmente, depois de semanas de impasse, o Sr. Luiz, com a autorização do presidente do Instituto Histórico e mediante o meu pagamento, contratou uma firma especializada que microfilmou o material, gravou em CD e o enviou para mim.

4 O diálogo tecido aqui é com nossa melhor tradição crítica: Andrade (s. d.); Candido (1965, 1989); Bosi (2003); Lafetá (2000).

5 Ao mesmo tempo, perguntar pelo novo guarda um sentido do Eclesiastes, livro da Bíblia de grande importância para a literatura, mencionado por Graciliano Ramos desde Caetés e por Jurandir Gomes na revista: “Nada de novo… Nem na frente ocidental, nem sob o sol. / Salomão e Remarque têm razão…” (All quiet…, Jurandir Gomes, Novidade, n.18, p.12, 8.8.1931).

6 Conforme explica Alfredo Bosi, exemplares desse ideal são os exercícios de crítica dialética realizados por Otto Maria Carpeaux e por Antonio Candido. E Bosi salienta também a recomendação de Benedetto Croce: ciente da diversidade literária de um período, no limite cabe ao crítico dedicar-se a uma história literária por monografias.

7 Segundo Ricardo Ramos (1992, p.110), grande foi a alegria de Graciliano por ter lido, numa revista americana, a compreensão de haver em Angústia a “crônica da condição do intelectual nos países subdesenvolvidos da América Latina”.

8 Vingança, de vingar e -ança, da raiz vindic-, vindicare: “vingar, castigar, pôr em liberdade”; vindicta, ae: “varinha com que o lictor dava um pequeno toque sobre a cabeça do escravo enquanto o pretor pronunciava a fórmula de alforria; defesa, proteção, vindita, castigo, punição”. Se o lugar-comum de vingança é aludir à violência, a palavra guarda um sentido de liberdade, de reivindicar; e vingar significa também “resistir vivo, medrar, sair vencedor” (Cretella Junior & Ulhôa Cintra, 1953; Houaiss & Villar, 2001).

 

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Ieda Lebensztayn, autora de “Graciliano Ramos e a Novidade: o Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis” (Editora Hedra), é doutora em literatura brasileira pela USP e pós-doutoranda no IEB-USP, bolsista da Fapesp

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