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O velho e habilidoso Graciliano

Publicado em 24 d novembro d 2008

Amálgama
Por DANIEL LOPES
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S. Bernardo (1934) Capa da última edição

Lembro que foi meu primeiro livro de Graciliano Ramos. Meu irmão ganhou, não leu, eu li e sapequei a quem estava por perto: sujeito inteligentíssimo. O livro: S. Bernardo (1934). Cujo personagem principal é Paulo Honório, 50 anos, que também é o narrador. Arrogante, avisa logo de saída que não teve educação quando moço, e pouco se importava com isso; que em vários momentos da narrativa poderia se repetir, a fim de fixar idéias nos leitores, tal como ele faz com seus peões, repetindo ordens.

Paulo Honório, do qual já sou íntimo e, portanto, alcunharei de PH, tinha ficha de cartório sem o nome de seus pais, e sim o dos padrinhos. Vida complicada. Infância miserável, desregulada. Juventude de brigas e prisão (depois de esfaquear um rival no amor de uma mulher). Havia trabalhado duro em uma propriedade chamada S. Bernardo, a qual, depois de muita manha e de muita negociação implacável com o bêbado, mulherengo e desesperançado filho de seu ex-patrão, adquire. É o início de sua volta por cima.

Logo, sem remorsos, manda darem cabo da vida de um certo Mendonça, coitado, vizinho da S. Bernardo e desafeto de PH, que, birrento como ele só, acha que o vizinho serve apenas para atrapalhar o progresso de suas terras. Constrói uma nova casa-grande, cobrando trabalho duro dos empregados, compra novos “móveis e diversos objetos que entrei a utilizar com receio, outros que ainda hoje não utilizo, porque não sei para que servem”.

Depois de abarcar terras do agora finado Mendonça, incorpora as de Fidélis, um paralítico, e as da família Gama (cujos membros “pandegavam no Recife, estudando direito”), embora respeitando o engenho de Magalhães. Que era juiz.

Como um (novo) oligarca, PH tem a imprensa na palma da mão, inclusive o maior jornal da capital Maceió, que louva em suas páginas os feitos “progressistas” de PH. Quando este jornal mete-se a besta, publicando dois artigos críticos a PH, o proprietário de S. Bernardo simplesmente dá uma taca de chicote em praça pública no editor da publicação. Ora siô. E suas relações com o governo alagoano resumiam-se em “aliciar eleitores, entregar-lhes a chapa oficial e contribuir com música e foguetes nas recepções do governador”. Que tinha mais o que fazer.

Utilitarista ignorante, até suas relações com a religião eram, digamos, práticas: “A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça”.

As coisas se complicam quando ele mete a se apaixonar. Por Madalena, uma bela professora de Maceió, a qual vai persuadir a casar-se com ele e ir morar na fazenda. Na verdade, as coisas se complicam só um pouco. Porque nosso herói quer casar mesmo é para, ora bolas, deixar um herdeiro para as terras de S. Bernardo, ou deixar S. Bernardo para um herdeiro. De resto, observem a visão instrumental que PH tem de um relacionamento íntimo:

Um seu interlocutor diz: “Quanto a mim, acho que em questões de sentimento é indispensável haver reciprocidade”. PH: “Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootecnia”. Por falar em técnica, ele pouco dá importância aos livros técnicos de agricultura. Tem vários livros, mas troça dos autores, gabado-se de que tudo o que sabe é graças à experiência própria (“Os meus autores não vieram olhar de perto os homens e as terras de S. Bernardo”).

As boas relações de PH com a esposa Madalena duram apenas poucas semanas depois de casados. Logo, começam a se deteriorar. Madalena não entende, por exemplo, por que o marido costuma bater em alguns de seus empregados, ao que ele retruca que não está acostumado a dar satisfações a quem quer que seja. Tem intrigas também com a tia da moça, dona Glória, que fora morar na fazenda com o casal. Logo, PH volta a estimar S. Bernardo mais que qualquer outra coisa, inclusive Madalena.

O principal motivo de chusma entre PH e Madalena, permito-me suspeitar, é que ele, velhaco, passa a dar valor negativo a um fato que antes havia lhe encantado, junto com a beleza da mulher: ela é inteligente. E ele não gosta de mulheres inteligentes, porque se sente diminuído. Os ciúmes e suspeitas de que Madalena estivesse lhe traindo, fosse com João Nogueira, Padilha ou Gondim, todos seus amigos muito próximos, só ganham ressonância por aquele fato primeiro: a intelectualidade de Madalena. É provável que se ela fosse uma ignorante, PH até fizesse pouco caso de seu comportamento extra-conjugal (que é apenas fruto de sua imaginação), talvez até debochando dela na frente dos amigos, por prazer de humilhar a mulher néscia. Mas Madalena é inteligente, e esse é o pomo da discórdia.

Nem o pequeno filho do casal (porque eles tiveram um filho) conspirava para a união de marido e esposa. Aliás, ele só piorava as coisas. PH vê o menino, “feio como os pecados”, engatinhando e caindo, e não vê em suas feições nenhum traço seu (apenas sua imaginação?). Não liga a mínima para a criança. E nem Madalena. De fato, esse pequeno abandonado ao qual PH a certo ponto da narrativa se refere como “o filho dela” fica aos cuidados de Casimiro Lopes, manso e fiel empregado de PH, e é o símbolo mesmo do fracasso do casamento.

Daí, a estória vai enveredar para o gran finale. Que na verdade nem é tão grande assim. Todo o enredo de S. Bernardo, como você deve ter inferido desta resenha, é simples. E, como você também já deve ter suspeitado, o grande barato de se ler Graciliano Ramos é testemunhar sua habilidade com a língua portuguesa. Sua intimidade. A traquinagem com o texto. Vejam como Graciliano se diverte com as palavras – um conhecido de PH, numa conversação,

(…) parecia à vontade catando o defeito dos vizinhos e esquecido do resto do mundo, mas não sei se aquilo era tapeação. Eu me insinuava, discutindo eleições. É possível, porém, que não conseguisse enganá-lo convenientemente e que ele fizesse comigo o jogo que eu fazia com ele. Sendo assim, acho que representou bem, pois cheguei a capacitar-me de que ele não desconfiava de mim. Ou então quem representou bem fui eu, se o convenci de que tinha ido ali politicar. Se ele pensou isso, era doido. Provavelmente não pensou. Talvez tenha pensado depois de iludir-se e julgar que estava sendo sincero. Foi o que me sucedeu.
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em entrevista a Joel Silveira, 1948