Memórias involuntárias
Publicado em 25 d março d 2011
Jornal Valor Econômico
Por JOSÉ CASTELLO
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De onde os escritores tiram seus livros? Em que abismos profundos eles os pescam? De que trevas os resgatam? Hoje, na era da internet, suas palavras mais íntimas, abrigadas em sites e e-mails, em geral se evaporam. Pistas muito preciosas, em consequência, se perdem. Mesmo para um escritor maduro, existem zonas secretas em que a escrita, em silêncio, ou em palavras apenas sussurradas, se gera. É doloroso pensar quanto perderíamos se as “Cartas”, de Graciliano Ramos, agora relançadas em primorosa edição pela Record, desaparecessem para sempre, engolidas pelo abismo do ciberespaço.
A força dessas cartas não surpreende. Para Graciliano, não só a correspondência, mas também a escrita de ficção mantinham, sempre, fortes vínculos com a vida. Em novembro de 1949, aos 58 anos, em plena maturidade literária, ele escreve à irmã Marili: “Arte é sangue, é carne. Além disso, não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos”. A carta relativiza sua imagem clássica, de romancista da realidade ou que se debruça sobre a realidade. Já com a obra pronta – morreria menos de quatro anos depois -, ele se apresenta não como um regionalista ou um realista, não como alguém que arranca a arte do mundo ou das coisas, mas como um homem que a arranca de dentro de si mesmo.
São muitas as surpresas que, nas cartas, nos esperam. Neste século XXI, quando os escritores – imersos em um mundo de imagens feéricas – costumam se apresentar como artífices do visível e são confundidos, frequentemente, com os retratistas e cinegrafistas, elas nos ajudam não só a entender melhor Graciliano, mas a entender melhor o que somos. Atravessando um longo período de 60 anos, entre outubro de 1892 e maio de 1952, a correspondência de Graciliano se oferece, ainda, como um vigoroso autorretrato do escritor. Sem saber que faz isso, ele escreve suas memórias. Nesse sentido, o século XX foi mais denso e firme que nosso século XXI, que começa volátil e anêmico, sem o sangue e a carne de que Graciliano fala.
Suas cartas, repetindo o que ele disse sobre suas ficções, são o resultado de suor e de sangue. Não são desabafos espontâneos nem comentários leves, ao contrário, dele exigem muito. Já em 1914, aos 22 anos, em carta ao amigo de infância J. Pinto, admite: “Hoje minha divisa é esta – Não escrever cartas a ninguém. Tu és uma exceção. E eu desejaria não escrever nem mesmo a ti”. Mas escrever é, no seu caso, um destino, uma condenação de que já não pode fugir. Prefere o silêncio, mas as palavras – já nas cartas – insistem em desafiá-lo.
Além do mais, Graciliano não sabe viver sem os outros. Na mesma carta, diz: “Parece-me que nós vivemos numa verdadeira solidão. É por isso que não somos bons. Eu me vou tornando ruim, muito ruim. Creio que acabei de contrair o mau vezo de morder, ocupação predileta dos desocupados”. Para fugir de seus males, pensa até em se tornar padre. Só no ano seguinte se casaria, pela primeira vez, com Maria Augusta de Barros, com quem teve quatro filhos. Ela morreria, de complicações do parto, em 1920. Em 1928, casa-se com Heloísa Leite de Medeiros e tem mais quatro filhos – entre eles, o escritor Ricardo Ramos (1929-1992).
Seu pessimismo e sua tristeza diante do mundo se originam não de leituras ou de filosofias, mas do sentimento de que nem a própria vida ele chega a dominar. Desabafa à irmã Leonor, em 1914: “Não tenho feito nada no terreno das cavacações. Sou foca no ‘Correio da Manhã’ e não sei quando poderei chegar a alguma coisa. Entretanto, não desanimo”. Ao falar das “cavacações”, Graciliano se refere à luta para viver; mas podemos pensar, ainda, em sua literatura, que logo tomará a forma de uma discreta, mas enérgica, escavação de si mesmo. Aos 22 anos, não podia antever o que lhe esperava: só em 1933 publicou “Caetés”, seu primeiro livro. Logo seguido, em uma febre interminável, de “S. Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), seus três livros maiores, todos gerados durante os 40 anos.
Graciliano foi, mais que um autor realista, um homem realista, para quem o fracasso e o mal eram inerentes à existência. Em 1947, com a fúria de um pai severo, escreve ao filho Júnio: “Andamos todos numa atrapalhação dos diabos, levados pela correnteza, nadando à toa, sem enxergar margem”. E, com sua habitual franqueza, admite: “Às vezes praticamos burrice vendo as consequências e não encontramos meio de evitá-las. Em determinadas situações, mandamos tudo para o diabo, queimamos as alpercatas e esperamos tranquilamente o naufrágio”. Graciliano transportou para suas ficções esse desprezo pelos ideais, a convicção de que o homem é fraco – e por isso, em vez de sonhar, só lhe resta fazer alguma coisa dessa fraqueza. E, ainda, seu apego amargo, mas forte, à condição humana. “Mudamos de profissão, vamos para o hospital ou para a cadeia, fabricamos romances ou vendemos cereais. Tudo no fim dá certo.” Não deixa de expressar um otimismo triste. Desiludido, mas otimismo.
Não se esquiva de observar em si rasgos de fraqueza e de falta de inteligência. Já em 1915, em carta à irmã Leonor, com uma franqueza masculina, observa: “Tenho andado com alternativas de fecundidade e de estupidez, o que não é mau de todo”. Critica, sem piedade, os próprios escritos: “Isso não é Arte, é claro, nem mesmo chega a revelar talento – uma certa habilidade, talvez”. Observa-se com desencanto. É dessa atitude dura, quase impiedosa, que ele retira não só a força para viver, mas a força para escrever. Sabe que, para sobreviver no meio literário, precisará de uma máscara. Descreve-a: “É preciso ser afoito, imodesto, cínico até. Não poderás saber a quantidade de pedantismo necessária a um tipo desta terra, onde tudo é fita, para embair a humanidade”.
Há uma dose inequívoca de crueldade não só no modo como Graciliano se julga, mas como julga seus personagens. Nenhuma maquiagem, nenhum pudor, nenhuma condescendência. As coisas como elas são. Essa atitude, em vez de conduzi-lo ao realismo das grandes paisagens e dos grandes temas sociais, contudo, o leva ao coração do real. Basta reler “Angústia”, “S. Bernardo”, “Vidas Secas” – o que neles se expõe, mais que a crueza de uma terra, é o estrago que ela provoca nos homens.
Em 1921, viúvo em Palmeira dos Índios, onde viria a se tornar prefeito, escreve a J. Pinto: “Sou um pobre-diabo. Vou por aqui, arrastando-me, mal. Há cinco anos não abro um livro. Doente, triste, só – um bicho”. Mais que mau humor ou tédio, essas confissões exibem a dor profunda de que Graciliano arrancou sua escrita. “Cavacações” interiores, como ele disse, descidas íngremes até regiões que, em geral, preferimos esquecer. Tem só 29 anos, mas já se vê próximo ao fim “Aborrecimentos, amolações doenças, meu velho. Ando gasto, acabado.” Prossegue: “Perdeste as ilusões, dizes. Eu, por mim, nunca as tive. Podes acreditar. Sou, talvez, no mundo o indivíduo que menos confiança tem em si mesmo”. Vê o sonho de se tornar escritor como tolice impossível. “Escrever, hoje, com a minha idade? Que pensas de mim? Sou um homem da ordem e sou uma cavalgadura, meu velho. Mas uma cavalgadura completa, sem presunção de espécie alguma.”
Entre as cartas de amor a Heloísa, uma delas, de 1928, se destaca pela força. Fala de si: “A insipidez cresceu, o deserto aumentou. Tenho a impressão de que há em redor de mim um desmoronamento, não encontro firmeza em nada, o próprio solo em que piso é traiçoeiro e cheio de perigos”. Mais à frente, médico de si mesmo, diagnostica: “Creio que estou realmente doido”. Imerso em sua dor, ele não chega a entender que experimenta as dores de uma difícil gestação. Que, pouco depois, a literatura o salvará. Os 40 anos se aproximam. A longa travessia o leva, sem que entenda isso, a um futuro glorioso. É sobre esse piso traiçoeiro e esse mundo adverso que sua literatura se ergue. Graciliano está quase pronto. Por meio de suas cartas, vemos o grande escritor nascer.
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