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Graciliano completo e inesquecível

Publicado em 23 d dezembro d 2011

Jornal Valor Econômico
Por GONÇALO JUNIOR
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Quase uma autobiografia, “Graciliano: Retrato Fragmentado”, de Ricardo Ramos, é um livro único no gênero memória. Com uma escrita cheia de estilo e de exercício narrativo, mas sem nenhuma pieguice, o filho vai às profundezas de suas lembranças e recorre a cartas, fotografias e documentos para falar do pai, Graciliano Ramos (1892-1953), autor da obra-prima “Vidas Secas” e um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.

Lançado originalmente em 1992, pela Siciliano, mesmo ano em que o autor morreu, esse pequeno volume teve pouca atenção na época. Tanto que não passou de uma edição. Agora, volta pela Globo recheado de fotografias de família, dois prefácios dos filhos de Ricardo e um indispensável ensaio de Silviano Santiago.

Tanto tempo depois, a obra continua intensa e arrebatadora, e contraria o título ao reunir todas as facetas possíveis do escritor alagoano, sem excluir suas fraquezas e franquezas. Mais velho de 17 filhos de um coronel do sertão alagoano que se diferenciava dos demais por seus interesses literários, Graciliano viveu intensamente seus mais de 60 anos. Entre momentos dramáticos e reviravoltas que não o impediram de escrever grandes romances, marcos da literatura regionalista das décadas de 1930 e 1940.

Eleito prefeito de Palmeira dos Índios (AL) em 1926 contra a sua vontade, com pouco mais de 450 votos, armou a cidade para enfrentar à bala o bando de Lampião, sobreviveu a uma emboscada de jagunços com a mulher grávida de oito meses e quase foi fuzilado por Agildo Barata ao se posicionar contra o movimento de 1930 que pôs Getúlio Vargas no poder. Até ser levado preso como subversivo para o Rio, onde amargou os horrores da ditadura Vargas, que narrou em “Memórias do Cárcere”.

Do Rio nunca mais saiu. Sobreviveu com pequenos empregos públicos e colaborações em jornais, revistas e editoras de livros, enquanto escrevia romances como “Angústia”, “Insônia” e “São Bernardo”. Ali encontrou a mais brilhante geração de escritores de seu tempo, que passou a frequentar sua casa, como Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa etc.

Ricardo costura essas lembranças em família e a convivência intensa com o pai. Sua ideia era suprir a desproporção que havia entre sua obra e biografia e a incoerência entre um homem visto de forma compacta sem nenhum conflito ou dívida e a criatura rude, sertanejo pitoresco e primitivo, o autodidata que certo dia simplesmente resolveu escrever. “A reconstituição do matuto esperto não se ajusta ao escritor, modelar na linguagem e na composição, capaz de criar ‘São Bernardo'”, observou, na introdução.

Longe de ser condescendente, empenhou-se em apresentar pai acima de tudo humano: justo, disposto a ajudar todos que o procuravam, mas também o político que submeteu o pistoleiro que tentou matá-lo a três dias de tortura para que revelasse o nome do mandante.

Por outro lado, defende-o da injusta acusação de racista. “Gostava de andar conversando, pegando no braço da gente. Falava baixo. Mas quando acertávamos o passo, e as palavras quase entravam pelos ouvidos, mesmo os barulhos da rua não o atrapalhavam.” Era assim com as polêmicas literárias entre amigos ou com o filho, um prazer à parte na leitura. Graciliano não fugia de nenhuma. Tinha coragem para dizer que os contos de Marques Rebelo eram melhores que os de Machado de Assis.

Esse aparente despretensioso perfil toca fundo o leitor, escrito com precisão e economia das palavras, rigoroso em seu gosto e valor estético. Uma obra obrigatória para quem ama literatura. Ou quer ler um livro inesquecível.

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CONHEÇA A OBRA DE GRACILIANO RAMOS

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  • Vidas Secas (1938)
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  • Vidas Secas – em quadrinhos (2015)
  • Infância (1945)
  • Insônia (1947)
  • Memórias do Cárcere (1953)
  • Viagem (1954)
  • Linhas Tortas (1962)
  • Viventes das Alagoas (1962)
  • Garranchos (2012)
  • Cangaços (2014)
  • Conversas (2014)
  • A Terra dos Meninos Pelados (1939)
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  • O Estribo de Prata (1984)
  • Minsk (2013)
  • Cartas (1980)
  • Cartas de Amor a Heloísa (1992)
  • Dois Dedos (1945)
  • Histórias Incompletas (1946)
  • Brandão entre o Mar e o Amor (1942)
  • Memórias de um Negro (1940) Booker T. Washington, tradução
  • A Peste (1950) Albert Camus, tradução

“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso.
A palavra foi feita para dizer.”

em entrevista a Joel Silveira, 1948