fev.12: Aurora e Seu Oscar
Publicado em 01 d fevereiro d 2012
Uma, duas vezes por semana, a cuíca ronca no morro, onde se elabora a fornada nova de sambas que a cidade vai ouvir durante o carnaval. Essa elaboração, porém, não se faz toda nas casas de madeira e lata: começa aí, mas a segunda fase da produção realiza-se na planície. O morro vende matéria-prima e compra mercadoria – dá ritmos e sentimentos, recebe obras musicadas, literatizadas, impressas em folhetos, expostas no disco e no rádio.
Não sabemos até que ponto a métrica, a rima, o adjetivo campanudo, desfiguram a coisa bruta e virgem nascida no Querosene. Como, entretanto, apesar de corrompida, coberta de bugigangas, ela é bem aceita aí de regresso, julgamos que o habitante do Querosene a reconhece e adota, admira as miçangas que a enfeitam. De fato não deve ter havido alteração profunda. Apenas o necessário para ser cantada no rádio e não desagradar muito no papel, escrita. A coisa bruta continua mais ou menos virgem.
Entre essas criações populares conhecidas hoje no país inteiro, duas avultam: seu Oscar, do ano passado, e Aurora, surgida há meses. Juntaram-se, formam o inevitável casal desajustado, mas no morro não se comportam como se vivessem em outro lugar ou em outra classe. Seu Oscar, homem gemente e queixoso, aperreado pela dor dos infelizes, nunca se revolta: definha, curte o desgosto, não se envergonha de mostrar-se ridículo narrando indiscretamente as ruindades da companheira e os sacrifícios que fez por ela. Oferece-lhe o que não possui, para trazê-la ao bom caminho: um apartamento em arranha-céu, ar refrigerado, a consideração dos fornecedores. Aurora, isenta de fantasias, e de coração, desdenha a promessa: arruma a trouxa, despede-se num bilhete, abandona o amigo e cai na baderna. Seu Oscar soluça no pinho as suas mágoas inúteis. Que aconteceria, pergunta, se tivesse conta no banco e um prédio confortável? Supõe que lhe seria possível acomodar em ambientes diversos a sua alma terna e resignada. Engano.
Imaginemos o casal muito rico. Aurora, transformada em madame, não deixa a casa: tem as derrapagens naturais, dentro das conveniências, e é boa mãe de família. Seu Oscar, livre de apoquentações, faz vista grossa a insignificâncias, recolhe os favores duma segunda Aurora, depois os duma terceira, o que provoca vingança. E assim por diante.
Um degrau abaixo, com posses menores e maior dose de moral, inibido de achar alívio, seu Oscar se aborrece um pouco, sente-se vítima duma injustiça e tem o cuidado de se apresentar bastante feliz, para evitar escândalo.
Afastando-se daí, proprietário e algumas luzes e precisando manifestar-se em letras, seu Oscar arranja uma história introspectiva, cataloga as ruínas que o ciúme produz no espírito dum cristão.
No interior seu Oscar está quase em segurança. Caso more em cidade pequena e disponha de recursos, tem a população, devota e ociosa, para fiscalizar de graça os costumes de Aurora, que procede bem à força. No campo, membro da canalha, facilmente larga a Aurora infiel, ou lhe dá uma surra, ato que ajusta as contas até nova traição.
A desgraça verdadeira para seu Oscar é pertencer à classe média e residir na capital. Arma-se contra ele uma quantidade enorme de desvantagens, a perfídia conjugal determina complicações irremediáveis. Funcionário escrupuloso, dono dum botequim no subúrbio ou vendedor de geladeiras, tipo de hábitos medidos, dócil ao ponto, ao horário do negócio, ao vencimento da prestação, deseja, recolhendo-se, achar em ordem a mulher e os chinelos. Certamente seu Oscar não dedica um afeto excessivo a Aurora, mas isto não é razão para que se prive dela. Também não se apaixonou pelo bureau da repartição ou pela caixa registradora do estabelecimento, e perturbar-se-ia se um desses objetos desaparecesse. As ações de seu Oscar estão orçadas e rigorosamente escrituradas. Há um dia para o cinema, um dia para as visitas, e as viagens se fazem sempre no mesmo ônibus. O chofer já se acamaradou e pára o carro antes da esquina. Seu Oscar dorme regularmente nove horas, trata do xexéu, lê o noticiário da polícia, respeita em demasia a opinião dos chefes, dos amigos, vizinhos. Evidentemente numa existência assim organizada as escorregadelas da consorte originam distúrbios imensos. Aquilo não está previsto, ataca preceitos firmados. Seu Oscar se desorienta, procura uma saída, mas falta-lhe imaginação e falta-lhe pecúnia, coisas indispensáveis para desatrapalhar-se. Os chinelos sumiram-se, a mulher se demora na rua, e isto é horrível. A mulher e os chinelos são como órgãos – seu Oscar sente-se amputado. Não se conforma. Que dirão os vizinhos, os amigos, os chefes? De que modo reagiriam eles se se vissem num aperto semelhante? Seu Oscar perde o sono, perde o apetite e perde o ônibus, atrasa-se no serviço, embrulha-se nas contas ou nas informações. Se o caso lastimoso existisse desde o princípio, não seria lastimoso: tudo estaria muito bem. Como não existia, ou parecia não existir, ocasiona uma surpresa – e as surpresas são intoleráveis. Que fazer? Fervilham resoluções disparatadas, diferentes das que o jornal noticia nas encrencas sentimentais. Seu Oscar emagrece, deixa a barba crescer, baralha as despesas. Vai murchando, secando, pega uma ideia que o alucina. Piora sempre – e ao cabo dum ano dá cinco tiros em Aurora e é preso. Exatamente como os outros, os figurantes das reportagens que ele costuma ler. Provavelmente o que sucederia aos amigos, aos vizinhos, aos chefes.
Nada disso no morro. Lá seu Oscar não lê jornais, não receia a opinião pública, ignora o que se passa no resto do mundo. Lastima-se, cata ingênuo os espinhos que tem no íntimo. E, paciente e choroso, não desanima: “Aurora, se você fosse sincera…”
Graciliano Ramos
1° de janeiro de 1941
(De Linhas Tortas, p. 307-311, 21ª edição, 2005, Editora Record, Rio de Janeiro)
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