abr.12: Um antepassado
Publicado em 01 d abril d 2012
O velhinho apeou, entregou o cavalo a um moleque, subiu os degraus do copiar, avizinhou-se do banco onde me distraía olhando, na preguiça e no calor, as cercas do curral, a serra distante, as árvores torradas, os xique-xiques e os mandacarus que manchavam de salpicos verdes a campina amarela.
– É você o meu bisneto?
Ergui-me, atentei no corpo musculoso e aprumado, na boca enérgica, no rosto liso e vermelho, rosto de criança.
– Talvez seja. Cheguei ontem e não conheço ninguém por estes arredores. Tenho um bisavô no outro lado do rio. Talvez seja o senhor. Não sei.
– Sou eu mesmo. Vim fazer-lhe uma visita.
– Ora essa! Não devia ter vindo.
Homem tão idoso, pegando noventa anos, deixar o travesseiro e os cochilos para visitar um descendente quase ignorado, que já ia perdendo o parentesco. Manifestei-lhe a surpresa com modos de gente da cidade:
– Sinto muito. Um incômodo. Ia apresentar-me ao senhor, hoje ou amanhã. Cheguei ontem.
Interrompeu-me, examinou sério, estirando o beiço, os meus reduzidos muques, o peito cavado, os ombros que se encolhiam:
– Doente?
Balancei a cabeça, esmorecido, bambo. E, num gesto vago, mostrando o organismo chinfrim:
– Um bando de cacos.
– É o que se ganha na rua.
Bateu à porta, chamou, entrou pisando com força, as rosetas das esporas tinindo, foi abençoar a filha e os netos – minha avó e meus tios. Cumprida a obrigação, voltou ao copiar. E, enquanto lhe preparavam o café, levei-o ao quarto que me haviam dado, o melhor de todos, com reboco, junto ao quintalzinho onde recendiam craveiros e panelas de losna. Ofereci-lhe a cadeira única, sentei-me na rede, procurei nas teias de aranha, no pátio branco varrido pelos redemoinhos, no chiqueiro das cabras, nos xique-xiques e nos mandacarus objeto que pudesse interessá-lo. As aranhas, as cabras, os espinhos, o calor e a poeira nada me sugeriam. Contrafeito, remexi o interior, em vão. Nenhum assunto por dentro, nenhum assunto por fora.
Mas o constrangimento durou pouco. O ancião dirigiu a conversa, loquaz, amaciando a palavra rude, Era um vivente alegre, simpático, sem tremura e sem calvície. As mãos calejadas agitavam-se firmes, tencionavam amparar-me a fraqueza e a doença; uma admirável cabeleira de teatro enfeitava aquela estranha velhice, pura, limpa, isenta de pigarro, de bronquite; o riso franco exibia dentes claros, perfeitos, capazes de trincar os ossos.
Começou esquadrinhando os livros que se arrumavam em cima dum caixão. Abriu um volume.
– O senhor lê sem óculos?
– Naturalmente, nunca precisei disso.
Encostou a página de letra miúda aos olhos muito azuis, afastou-a, aproximou-a:
– Quelques? Que diabo é quelques?
Pronunciava cuelques. Soltou a brochura:
– Bem. Deve ser língua de gringo. Não entendo.
– Melhor. Se entendesse, não tinha tão boa vista. A leitura arrasa uma pessoa.
– Talvez arrase. Para que tanto papel? Enfim. Não sei não, os tempos estão mudados.
Não aprovou nem desaprovou a literatura exposta no caixão e na mesinha, estreita e coxa, prosa mais abundante que a que havia absorvido em quase um século.
Pôs-se a falar sobre D. Pedro II e a família imperial, como se se referisse a criaturas embarcadas para o estrangeiro na véspera. Conhecia poucos fatos, obtidos por via oral, mas estavam bem guardados.
– Que memória!
– Não é vantagem. Queria que eu andasse com besteiras, tresvariando? Sua bisavó morreu na caduquice. Miolo fraco. E ainda estava bem moça, a pobre. E calete. Pois, como ia explicando, a princesa Isabel agarrou o conselheiro e disse assim…
– Parece que o senhor foi testemunha.
– Foi o que se deu. Todo mundo sabe.
Com certeza o homem se lembrava de casos antigos e esquecia os acontecimentos novos. Engano. Experimentei-o e notei que o espírito de antepassado funcionava direito, sem falhas. Realmente o vocabulário dele tinha algumas centenas de palavras. O meu ia muito além, mas a significação dum desses instrumentos fugia às vezes e era-me indispensável consultar o dicionário. Se eu possuísse cabeça igual àquela, o meu trabalho seria fácil. Lamentava-me em silêncio – e o velho discorria sobre os negócios da fazenda. Interrompeu-se, observou as barrocas do chão e as paredes negras:
– Você aqui está mal acomodado. Vá lá para casa.
– Impossível. Não faço uma desconsideração a minha avó. Estou bem.
– Vá passar alguns dias comigo.
– Perfeitamente.
Desejava apresentar-me a mulher e o filho.
– Que idade tem ela?
– Vinte e cinco anos, coitada. Vive cheia de macacoas e não há remédio que sirva. O pequeno tem seis incompletos.
– Ora vejam que fim de mundo! Exclamei. Fiz dezoito anos e tenho um tio-avô com menos de seis. Incrível.
– É o último, afirmou o patriarca. A mulher, achacada, entregou os pontos, e daqui em diante não produz.
Graciliano Ramos
Rio de Janeiro, abr. 1942
(De Viventes das Alagoas, p. 87-90, 19ª edição, 2007, Editora Record, Rio de Janeiro)
.
Veja mais na categoria Um texto por mês