jun.12: Carta a Heloísa Medeiros
Publicado em 01 d junho d 2012
És uma extraordinária quantidade de mulheres
Mandei-te uma carta pelo último correio e já a necessidade me aparece de falar novamente contigo. Se pudesse, empregaria todo o tempo em escrever-te, só para ter o prazer de receber respostas. Tenho tanto que te dizer… Nem sei por onde começar, fico indeciso, com a pena suspensa, vendo interiormente esses olhos que me endoideceram quando os vi pela primeira vez. Muitas coisas para dizer-te, mas coisas que só se dizem em silêncio e que talvez compreendas, se houver afinidade entre nós.
Santo Deus! Como isto é pedantesco! Eu desejava ser simples, dizer-te ingenuamente o que sinto e o que penso. Mas sentimento e pensamento, indisciplinados, não se deixam agarrar. Vou jogar aqui o que me vier à cabeça, à toa, sem ordem.
É verdade que és minha noiva? Não é possível, sei perfeitamente que tudo isto é um sonho, que vou acordar, que ainda estamos em princípio de dezembro, que tu não tens existência real. Esta carta nunca te chegará às mãos, porque não tens mãos, és uma criatura imaginária. A flor que me deste e que agora vejo, murcha, é simplesmente um defeito dos meus nervos. Beijando-a, tenho a impressão de beijar o vácuo. Já tiveste em sonho a consciência de estar sonhando? É assim que me acho. Vem para junto de mim e acorda-me.
Causaste uma perturbação terrível no espírito dum pobre homem que nunca te fez mal nenhum. Isto com certeza te dará alegria, porque todas vocês gostam de rasgar o coração da gente. Com esses modos românticos, esse rosto de santa que desce do altar, és uma fera. Vieste chamar-me para passar quinze horas a fio cercado de saias. E quando me tens seguro: “Ora meu caro senhor, deixe-se de histórias. Tudo isso foi pilhéria, não houve nada.”
Depois, uma reviravolta, estamos noivos. Ou não estamos? Ainda será engano meu?
Amo-te com ternura, com saudade, com indignação e com ódio. Confesso-te honestamente o que sou. Se te não agradam sentimentos tão excessivos, mata-me. Mas não me mates logo: mata-me devagar, deitando veneno no que me escreveres. Provavelmente sabes fazê-lo. Não devias ser como és.
Estou a atormentar-te, meu amor. Perdoa. Se não fosses como és, eu não gostaria de ti.
És uma extraordinária quantidade de mulheres. Quando me vieste pedir não sei que para o Natal, eras uma. Depois, em um só dia, ficaste duas, muito diferentes da primeira. Desejei ver qualquer das três e levei à casa do padre um bacharel que vendia livros. Apareceu-me outra. Daí por diante o número cresceu, cresceu assustadoramente. Na sexta-feira, antevéspera de tua partida, encontrei pelo menos vinte. No sábado, em nossa casa, havia uma na sala, outra na sala de jantar, dez ou doze ao pé da janela. És multidão. Como me poderei casar com tantas mulheres? O pior é que todas me agradam, não posso escolher.
Por que não te deixaste ficar mais uma semana? Por que não ficaste definitivamente?
Tenho recebido parabéns pelo meu novo estado, há quem suponha que me casei contigo. Era o que devíamos ter feito. Tudo tão fácil! E agora? Quanto tempo é necessário esperar ainda? Conheces algum padre que me possa casar sem confissão? Não estou disposto a ajoelhar-me aos pés de ninguém. Mentira: estou disposto a ajoelhar-me aos teus pés, a adorar-te.
Tenho o pressentimento de que te arrependeste do que fizeste. Está arrependida? Se estás, sê misericordiosa, não mo digas agora.
Quando me escreveres, dize-me com singeleza o que há em teu coração… contanto que não sejam coisas desagradáveis.
Que incoerências! Que disparates! Tudo por tua causa.
Adeus, meu amor. Recomendações a d. Lili (excelente amiga) e a todos os teus. Estou muito agradecido a teu pai por ter ouvido com resignação a arenga do padre Macedo.
Beijo-te as mãos. Teu Graciliano. Palmeira, 18 de janeiro de 1928.
IN: RAMOS, Graciliano. Cartas. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 117-120.
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