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Graciliano Ramos, por Otto Maria Carpeaux: 120 anos, homenagem em dobro

Publicado em 01 d setembro d 2012

Da revista Revista Estudos Avançados – Scielo
Por IEDA LEBENSZTAYN
Link original.


RESUMO

Apresento dois ensaios de Otto Maria Carpeaux a respeito de Graciliano Ramos, que permitem conhecer melhor o crítico e o romancista: uma homenagem aos sessenta anos do escritor e um artigo quando de sua morte. Revelando o interesse de Graciliano por Dante Alighieri, o crítico, com precisão e imagens poéticas, apreende a força regional e universal do romance moderno brasileiro criado pelo escritor, “círculo fechado” em que se fundem artisticamente vertentes sociais e introspectivas.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, Otto Maria Carpeaux, Romance moderno brasileiro, Dante Alighieri.


ABSTRACT

I present two Otto Maria Carpeaux’s essays about Graciliano Ramos, which permit us to know better the critic and the novelist: an homage to the writer’s sixty years and an article published when he died. Showing Graciliano’s interest on Dante Alighieri, Carpeaux, accurately and with poetic images, captures the regional and universal strength of the Brazilian modern novel created by the writer, “closed circle” in which the social and introspective faces artistically blend.

Keywords: Graciliano Ramos, Otto Maria Carpeaux, Brazilian modern novel, Dante Alighieri.


Ao completar cinquenta anos, em outubro de 1942, Graciliano Ramos (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) recebeu o prêmio “Felipe de Oliveira” pelo conjunto de sua obra, com direito a almoço no restaurante Lido, em Copacabana, organizado pelo amigo Aurélio Buarque de Holanda (Vasconcelos Filhos, 2008, p.203-4). Entre os 93 presentes, estiveram Álvaro Lins, Amando Fontes, Augusto Frederico Schmidt, Candido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira, Jorge Amado, Jorge de Lima, José Lins do Rego, José Olympio, Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Murilo Miranda, Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai, Valdemar Cavalcanti.

Migrante forçado pela prisão, o romancista, no discurso de agradecimento, identifica sua trajetória com a de alguns amigos: Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai, José Lins do Rego e Aurélio Buarque de Holanda. Salienta que, de procedências variadas, eles jamais suporiam “juntar-se e auxiliar-se” no Rio de Janeiro: dez anos antes, nas universidades europeias, Carpeaux e Rónai não pensavam que um dia, expulsos pela guerra, estudariam a terra e a literatura brasileiras; em 1930, José Lins do Rego escrevia artigos em Maceió, mas se surpreenderia se lhe dissessem do Ciclo da Cana-de-Açúcar; Aurélio Buarque de Holanda, professor e poeta nos anos 1930 em Alagoas, também não imaginaria seu futuro no Rio de Janeiro, de contista e dicionarista (Ramos, 1943; Bastos, 2010).

Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen: Viena, 9 de março de 1900 – Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1978) chegou ao Brasil em agosto de 1939, em companhia de sua mulher, dona Helena, fugindo do nazismo. Em três anos aprendeu a língua portuguesa a ponto de dar a público o livro de ensaios Cinza do purgatório. Publicou também: Origens e fins (1943); Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira (1949); Respostas e perguntas (1953); História da literatura ocidental (oito volumes, de 1958 até 1966); Presenças (1958); Uma nova história da música (1958); Livros na mesa (1960); A literatura alemã (1964); A batalha da América latina (1965); O Brasil no espelho do mundo (1965); Vinte e cinco anos de literatura (1968); Hemingway: tempo, vida e obra (1971); Alceu Amoroso Lima (1978, póstumo).

Além desses livros, Carpeaux publicou vários ensaios em periódicos, com interpretação iluminadora em especial da literatura brasileira, a serem por nós descobertos, alguns dedicados a Graciliano. “Visão de Graciliano Ramos”, que saiu na imprensa em 1942, justamente por ocasião dos cinquenta anos do escritor, integra o reeditado volume Homenagem a Graciliano Ramos e também o livro de Carpeaux Origens e fins; é prefácio da edição antiga de Angústia da Record e hoje se encontra em Ensaios reunidos 1942-1978 (Carpeaux, 1999, v.I, p.443-50).

“Amigo Graciliano” saiu em O Globo, do Rio de Janeiro, em 1953. O recorte pertence à Fundação Casa de Rui Barbosa, segundo pesquisa do professor Zenir Campos Reis, e o texto se lê em Teresa: revista de literatura brasileira (2001). Consta também de tal número de Teresa (2001, p.148-53) o ensaio “Graciliano e seu intérprete”, originalmente publicado em O Jornal, do Rio de Janeiro, a 23 de fevereiro de 1947.

Em outubro de 1942, Carpeaux enviou a Graciliano um singelo e bem-humorado cartão, cumprimentando o amigo pelo aniversário de cinquenta anos:

Meu caro e velho Graça,
Soube tarde demais do aniversário e, não sabendo também o endereço, não pude telegrafar. Queira aceitar, assim, felicidades atrasadas, e a repetição dos meus sentimentos invariáveis com o velho Graça, cada vez mais velho.
velhíssimo seu Carpeaux.1

A 26 de outubro de 1952, dez anos depois da referida homenagem, Carpeaux saudou “Os sessenta anos de Graciliano Ramos” por meio do Correio da Manhã, jornal onde trabalhavam. Transcrevo a seguir esse artigo e também “Graciliano Ramos (No sétimo dia de sua morte)”, que provavelmente saiu no Correio da Manhã em 27 de março de 1953. Ambos os textos constam de caixas de recortes do Arquivo Graciliano Ramos do Instituto de Estudos Brasileiros (ieb-usp).2

Com sua força intelectual e integridade, o crítico nos ensina nesses textos a elogiar quem merece “admiração incondicional”. Graciliano, “severo com os outros e consigo mesmo”, foi “amigo perfeito”. Como escritor, ao combinar representação social e introspecção, construiu artisticamente juntos o problema social e o problema moral da gente do Brasil, elevando-se, com a autenticidade de seu regionalismo moderno, por exemplo em Angústia, à altura universal da tragédia.3 Estilista, se a harmonia de suas frases era “impiedosa”, possuía ele um “grande coração” para apiedar-se de “vidas mortas” e ressuscitá-las, tendo deixado para suas personagens uma “esperança de saída” num mundo impossível de epopeia.

Que sejam recolhidos de fato, ou seja, lidos tais ensaios: o propósito é partilhar com os leitores o prazer de encontrar, com Otto Maria Carpeaux, palavras precisas e imagens poéticas de sua interpretação da obra de Graciliano Ramos. E, assim, conhecer melhor o crítico e o romancista. Saber, por exemplo, que Graciliano ainda em Maceió estudou italiano para ler Dante. E acompanhar a imagem concebida por Carpeaux, que ecoa a perfeição trágica do fazer poético de Graciliano, universal e perene a partir de conflitos regionais: escreveu seus romances como quem faz círculos na areia, “na areia movediça de sua terra, tão seca… Mas quando estavam escritos, já não se apagavam mais”.

OS SESSENTA ANOS DE GRACILIANO RAMOS

Otto Maria Carpeaux4

Amanhã, Graciliano Ramos faz sessenta anos. Terá de suportar muitas homenagens, tão bem merecidas, da parte dos intelectuais do país inteiro e dos seus amigos, mais numerosos do que o pessimista inveterado acredita. Também terá, espero, paciência para aceitar a homenagem humilde destas linhas, que me permito oferecer-lhe em meu nome, como seu amigo de muitos anos, e em nome de todos os que trabalham nesta redação. Pois inspira-nos orgulho o fato de ser Graciliano Ramos nosso companheiro de trabalho.

Este não é o lugar para apreciar-lhe a obra que garante a Graciliano Ramos sua posição permanente na história da literatura brasileira. Mas seria sinal de intolerável mediocridade a falta de coragem para elogiar um contemporâneo que nos inspira admiração incondicional. Graciliano Ramos é grande escritor.

É romancista de verdade. Já o foi em sua obra de estreia, Caetés, descoberta que as letras nacionais devem à sagacidade de Augusto Frederico Schmidt. Depois, todos reconheceram o valor de S. Bernardo, de Angústia, de Vidas secas, de Infância. Graciliano Ramos é mestre da língua: um estilista. Mas a arte do seu estilo não se limita à expressão verbal. Por meio de um simbolismo sutil e profundo sabe estilizar o realismo cruelmente verídico das suas análises psicológicas e dos seus enredos sociais, espelhos da vida brasileira, sempre fiéis à verdade embora como envoltos em uma nuvem que um crítico norte-americano de sua obra chamou “tristeza do mundo”.

Realmente, o conceito de Graciliano Ramos formou com respeito ao mundo e ao gênero humano não é dos mais lisonjeiros. Assinaria ele, com o sorriso sarcástico que lhe é próprio, a frase seguinte (conquanto não soubesse que o autor dela é o reacionaríssimo conde Joseph de Maistre): “Não sei o que é a vida de um canalha, porque não o sou; mas sei que a vida de um homem decente é abominável”. Assim também acredita o homem decente Graciliano Ramos. Apesar de a vida, em zigue-zagues milagrosos, ter levado o ex-prefeito de Palmeira dos Índios a um lugar no Dicionário da literatura universal, nosso Graciliano sempre ficou pessimista.

É grande e saboroso seu anedotário a respeito. Cumprimentei-o certa vez: “Bom dia, Graça”. E ele me respondeu: “Você acha?”. Implacável para consigo mesmo, tem o direito de o ser também quanto aos outros. Quando lhe elogiaram a figura humana de certo escritor medíocre, dizendo: “Sua vida foi superior à sua obra”, Graciliano respondeu secamente: “Qualquer vida teria sido superior à sua obra”. Mas há casos em que a obra não se pode separar da vida. Em Graciliano Ramos, por exemplo, não sabemos o que é superior: a obra do grande escritor ou a vida do homem admiravelmente decente. É o escritor, o homem, o companheiro e o amigo que saudamos comovidos, no dia do seu sexagésimo aniversário.

GRACILIANO RAMOS (NO SÉTIMO DIA DE SUA MORTE)

Otto Maria Carpeaux5

Angústia, a obra-prima de Graciliano Ramos, começa com o mal-estar horrível que Luís da Silva sente na madrugada depois do crime, do crime com que termina o romance. É um círculo fechado dentro do qual se move o personagem, o pequeno intelectual fracassado, vegetando na capital de um Estado do Nordeste. Angústia parece, embora psicologicamente aprofundado, romance regionalista. No entanto, o crítico norte-americano R. H. Hays deu a um ensaio sobre Angústia o título: “The world’s sorrow”, A tristeza do mundo. O círculo fechado da vida de Luís da Silva seria símbolo de outra coisa, mais profunda que as noites desta nossa existência.

Antigamente, pensei em comparações. Em Gontcharov, quanto ao ambiente e ao sopro épico de quem escreveu, durante a vida toda, romances que são como fragmentos de uma grande epopeia das Vidas secas. Ou então, em Hardy, o pessimista que acreditava o mundo criado por um Demiurgo maligno. Mas há outro termo de comparação, maior e talvez mais certo.

Só poucos amigos íntimos sabem que Graciliano Ramos, quando ainda em Maceió, estudava muito a língua italiana. Para quê? A resposta que ele próprio deu, certa vez, surpreenderá: para ler Dante.

Todas as obras de Graciliano Ramos parecem-se com círculos fechados em que, como nas male-bolge, nos círculos do inferno dantesco, se ouvem “parole di dolore, accenti d’ira“. Ao próprio Graciliano Ramos escaparam, na conversa de todos os dias, “parole di dolore” e “accenti d’ira“. Foi, pela aspereza das expressões, pela inflexibilidade do caráter, uma figura dantesca. Viveu, entre nós, como um exilado.

Já não há epopeias, hoje em dia. O túmulo de Ravenna encerra um ciclo, para sempre fechado, de poesia. Graciliano Ramos não foi nem quis ser poeta. Mas foi mestre de um estilo de economia singular. Perguntaram, certa vez, a Dante por que tinha escrito em tercetos sua obra. Respondeu: “Para ninguém poder tirar ou acrescentar um verso”. Também seria difícil tirar ou acrescentar uma partícula às frases de Graciliano Ramos ou tirar-lhes uma vírgula sem destruí-las. Seu estilo, tão perfeito, é sinal da fusão completa de forma e matéria das suas obras. Seus romances pareciam regionalistas. Escreveu-os como quem faz círculos na areia: na areia movediça de sua terra, tão seca… Mas quando estavam escritos, já não se apagavam mais. Tinham a permanência de figuras geométricas, embora cheias de vida: vida dos ambientes que o romancista observou, vida das almas que criou. Em S. Bernardo, Angústia, Vidas secas, reúnem-se, de maneira bastante rara, a corrente social e a corrente psicológica, introspectiva, as duas grandes tendências do romance moderno. Nessa fusão de elementos baseia-se, esperamos, a posição histórica de Graciliano Ramos e das suas obras, como contribuições do romance brasileiro à literatura universal.

São romances relativamente curtos. Não há epopeia hoje em dia. Antes parecem fragmentos de uma grande epopeia: blocos erráticos que uma tempestade extratemporal deixou no sertão do Brasil. Mas esses blocos, firmes como pedra, encerram vidas humanas e até a vida de um animal que nunca poderemos esquecer: da cachorrinha Baleia. Só as podia sentir e compreender quem teve o dom mágico de ressuscitar vidas mortas; e um grande coração para apiedar-se delas. Graciliano Ramos foi homem áspero, severo com os outros e consigo mesmo. Mas quem lhe leu as entrelinhas sabe que foi um homem bom, muito bom. E foi amigo perfeito.

De perfeição geométrica são suas obras, como aqueles círculos, cheios de “parole di dolore, accenti d’ira“, dos quais não se sai para toda a eternidade. Graciliano Ramos deixou aos seus personagens, presos na harmonia impiedosa de suas frases, uma esperança de saída. Mas do círculo desta vida só se sai pela porta estreita. No entanto, ficamos consolados. Graciliano Ramos, sua voz, seus gestos, sua amizade, sua obra não morreram. Ficam conosco para sempre.

Notas

1 Cartão de Otto Maria Carpeaux a Graciliano Ramos. Rio de Janeiro, out. 1942. Correspondência passiva. Arquivo Graciliano Ramos – ieb-usp.

2 Agradeço a Elisabete Marin Ribas e a Gabriela Giacomini de Almeida, do Arquivo do ieb-usp, a atenção e a gentileza de sempre.

3 As expressões destacadas são de outro importante ensaio de Otto Maria Carpeaux 1999, p.884).

4 Carpeaux (1952). O artigo consta de uma das caixas de recortes do Arquivo Graciliano Ramos do ieb-usp.

5 Carpeaux (1953). Referência provável; o artigo consta de uma das caixas de recortes do Arquivo Graciliano Ramos do ieb-usp.

 

Referências

BASTOS, H. et al. Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem. Brasília: Hinterlândia, 2010.

CARPEAUX, O. M. Os sessenta anos de Graciliano Ramos. Correio da Manhã, 26 de outubro de 1952.

_______. Graciliano Ramos (No sétimo dia de sua morte). Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27 mar. 1953.

_______. Autenticidade do romance brasileiro. In: ___. Ensaios reunidos 1942-1978. Organização, introdução e notas de Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: UniverCidade & Topbooks, 1999. v.I, p.884.

RAMOS, G. Discurso de Graciliano Ramos. In: schmidt, A. F. et al. Homenagem a Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Alba, 1943.

TERESA: Revista de Literatura Brasileira. São Paulo, n.2, p.144-7, 2001.

VASCONCELOS FILHO, M. Marulheiro: viagem através de Aurélio Buarque de Holanda. Maceió: Edufal, 2008.

 

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Ieda Lebensztayn, autora de “Graciliano Ramos e a Novidade: o Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis” (Editora Hedra), é doutora em literatura brasileira pela USP e pós-doutoranda no IEB-USP, bolsista da Fapesp

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