set.12: Milagres
Publicado em 01 d setembro d 2012
Cartomantes, quiromantes, profetas, espíritas, adivinhos de toda a casta, a Santa de Coqueiros e o padre Cícero. Quando um desses está em evidência, os jornais aumentam a tiragem. Lemos as notícias, bocejamos, sentimos desgosto. Realmente o povo é supersticioso.
Pensando assim, afastamos por um momento as nossas superstições, censuramos com azedume as superstições alheias. Depois voltamos às nossas.
Adoramos vários deuses, uns imateriais, outros de ferro, movidos por água ou alimentados a carvão e a gasolina. É necessário que alguém nos salve, a Divina Providência ou Henry Ford.
Faltam-nos muitas coisas, e o pior é não nos esforçarmos por obtê-las. Esperamos que elas nos venham de fora do céu, da Rússia, dos Estados Unidos ou da Itália.
Milagres. Quem reduzirá o aluguel das casas e elevará o câmbio? O governo, provavelmente. Não podemos viver sem tabus: eleições, por exemplo, o voto secreto.
O essencial é que o país tenha um homem, ou antes um super-homem, um herói. Enquanto ele não chega, contentamo-nos imaginando alguns. Os que estão perto diminuem e os que estão longe aumentam, o que parece um disparate, mas não é.
Há por aí numerosos talentos. Deviam ser aproveitados. Acreditamos neles, oh! Temos grande confiança neles. Um dia lemos o que eles escrevem – e o entusiasmo encolhe-se.
Como é indispensável darmos empregos às nossas aptidões de basbaques, procuramos outros. Onde andam eles? Meu Deus! Por que foi que o Rui Barbosa morreu? Um cavalheiro que produziu tantos discursos que a gente admirava sem perigo! Se ele ainda vivesse, a constituição estaria pronta. A constituição é uma réplica.
A constituição, sim senhor, é o que vai fazer milagres. Como será a constituição? Comprida ou curta? Semelhante à primeira ou diferente dela? Escrita em português ou em brasileiro? Ninguém sabe, e inspira por isso um imenso respeito.
Mas o milagre que nos convém será gramatical ou geográfico? Projetaram estraçalhar o mapa e cosê-lo de novo. Improvisaram uma divisão encrencada, com estados, províncias e territórios. Como ficaria essa manta de retalhos? Os pedaços seriam irregulares, como em toda parte ou quadrados, como na América do Norte, onde a própria terra é quadrada.
De qualquer modo desejamos um milagre de oito milhões de quilômetros para o Brasil e outro muito maior para o resto do mundo. Democrático ou aristocrático? Quem sabe lá? Uns querem um governo popular, outros apelam para os figurões.
Milagre de natureza parlamentar ou de ordem técnica?
Necessitamos estradas, portos, um bando de coisas que todos pedem e ninguém se aventura a executar.
E a instrução, é bom não esquecer a instrução. Como estamos longe do tempo em que, pela graça divina, sem professores, dicionários e outras maçadas, um sujeito aprendia do pé para a mão as línguas do mundo inteiro! A verdade é que hoje seria muito bem recebido um milagre, ou um decreto, que nos armasse depressa, não apenas com as línguas, mas com todos os conhecimentos que distinguem os homens da Academia de Letras, do Liceu Alagoano, da Sociedade de Medicina etc.
Também seria importante a supressão repentina dos bandidos do Nordeste e o desaparecimento das secas.
Milagre estupendo era o que Pernambuco nos queria impingir há dias, essa história de agarrar a eletricidade que anda pelas nuvens. Um milagre terrível! Infelizmente a eletricidade portou-se mal, fez como esses defuntos mal-educados que, nas sessões de espiritismo, quando se anuncia uma demonstração espalhafatosa, metem a viola no saco.
E o milagre gorou.
É conveniente que se arranjem outros.
IN: RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 323.
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