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Atrás da escrita de ponta de um mestre

Publicado em 20 d outubro d 2012

2012: 120 anos de Graciliano    

O Estado de São Paulo
Por ANTONIO GONÇALVES FILHO
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A comemoração dos 120 anos de nascimento do escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), no dia 27 deste mês, começa na próxima semana com dois lançamentos de livros e um seminário em São Paulo, Belo Horizonte e no Recife, patrocinado pela Editora Record, que publica suas obras. Homenageado principal da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2013, que ainda não fechou a programação dedicada ao autor, Graciliano é lembrado pela Record com 81 textos inéditos em livro no volume Garranchos, que será lançado dia 23, no Masp, na abertura do seminário promovido pela Record (leia programação nesta página). Simultaneamente, a editora Boitempo coloca nas livrarias a nova versão (com acréscimos) da biografia O Velho Graça, originalmente publicada há 20 anos pelo professor de literatura Dênis de Moraes. Como bônus, o livro traz uma rara entrevista do escritor ao jornalista Newton Rodrigues, publicada uma única vez, em 1944, na extinta revista carioca Renovação, e reproduzida com exclusividade pelo Sabático (veja trecho na página ao lado e a íntegra no site do jornal).

Graciliano era avesso a entrevistas. Em pleno Estado Novo, Newton Rodrigues (1919-2005), que foi colunista do Estado entre 1991 e 1994, conseguiu dele declarações surpreendentes. Usando o pseudônimo Ernesto Luiz Maia, Rodrigues começou sua carreira jornalística com uma conversa franca, no momento em que Graciliano trabalhava no manuscrito de Infância, publicado em 1945. Como membro do Partido Comunista do Brasil (depois Brasileiro), Rodrigues queria saber do escritor a razão da “falta de penetração de autores sérios na massa”. Graciliano, que se filiou ao Partidão um ano depois, respondeu: “A massa é ‘muito nebulosa'”. E os escritores, segundo o velho Graça, não constituem uma classe, como sugeriu o entrevistador. “Eles estão numa classe, que não é, evidentemente, a operária.” Consequentemente, conclui o escritor, os autores seriam incapazes de saber o que a massa quer ler – e, na época, eram os folhetins, antes que as novelas da televisão viessem a ocupar o imaginário popular.

Ele volta a falar da “massa” no inédito Garranchos, organizado por Thiago Mio Salla, doutor em Comunicação Social pela USP e autor de uma tese sobre Graciliano. Entre os textos do livro, o jornalista selecionou uma palestra sobre o tema, feita em 1947. Nela, o escritor, então já filiado ao PCB, define o livro como um “objeto mais ou menos inútil à massa”. Literatura ao alcance do povão? O livro “está perto, à mão, na vitrine”, diz ele. “Agora esperemos que o homem do povo se mexa.” E pague pelo livro, pois os escritores, arremata Graciliano, “não vivem no éter” – e ele fala assim, sem medir palavras, numa palestra da campanha promovida pelo Partidão para estimular a venda de obras de orientação comunista.

Em outras ocasiões, o escritor mediu-as com régua em punho, cortando com ela parágrafos inteiros, não propriamente atrás da “mot juste” – da palavra exata – de Flaubert, mas do pensamento enxuto, direto. Garranchos, no entanto, vale menos pelos textos e mais pela sinceridade de Graciliano. Muitos dos escritos assinados com pseudônimos – antes de Graça usar a régua – não estão à altura do autor que viria a publicar clássicos da literatura brasileira (Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas, relançados em box pela Record). Em contrapartida, o organizador Mio Salla confere a Garranchos o mérito de permitir ao leitor acompanhar a “evolução estilística” de um autor que, ao experimentar diversos gêneros (crônica, poesia, conto, ensaio político), encontrou seu nicho quando abandonou seus pseudônimos. E eram vários, de J. Calisto a Anastácio Anacleto.

As crônicas mais antigas, dos anos 1910, elegem temas um tanto bizarros, como a falta de mulheres na Terra do Fogo (em 1915). Os contos são melhores – e um exemplo disso é O Ladrão, escrito no mesmo ano, quando Graciliano trabalhava como revisor, no Rio. O conto fala de um homem que, numa noite fria, rouba um armazém, tropeça na lama e é acossado pela matula selvagem, que lincha o pobre diabo com a ajuda do sacristão da cidade. O tema do larápio amador, capturado pela massa, voltaria 20 anos depois numa narrativa mais amarrada e crítica sobre a suspeita moral da sociedade burguesa (Um Ladrão).

A segunda parte de Garranchos reúne textos produzidos nos anos 1920, quando Graciliano retoma seu lugar no provinciano O Índio, jornal da alagoana Palmeira dos Índios, cidade para onde voltou em setembro de 1915, tornando-se, em 1927, o mais rigoroso e honesto prefeito do município, que governou até renunciar, em 1930. Ele começou a escrever no periódico em 1921, assinando três seções, entre as quais Garranchos, que dá título ao livro. Já no primeiro “garrancho”, ele pergunta ao leitor se sofre de insônia. Sofre? “Então não usará melhor narcótico”, garante. Mas estava errado. No sétimo, ele desperta o leitor aos gritos com o relato de um crime real e monstruoso, o de um garoto de 11 anos que mata a golpes de enxada o coleguinha de 13. Além de vociferar contra assassinos precoces, faz militância ecológica pelo plantio de árvores em Palmeira dos Índios e impreca contra o analfabetismo que assola a cidade.

Os textos começam a melhorar quando Graciliano parte para Maceió, nos anos 1930, e começa a colaborar (com pseudônimo) no Jornal de Alagoas. É lá que virou grande amigo de José Lins do Rego, promovendo o romance regionalista. Há, em Garranchos, uma notável provocação ao crítico modernista Prudente de Moraes Neto (1904-1977). Graciliano escreve que Lins do Rego “não precisa recorrer ao pitoresco para dar vida às suas criações”, espetando os filhos da Semana de 22.

Não satisfeito, retrocede no tempo e compara o autor de Menino do Engenho a Machado de Assis, justificando que a obra do amigo tem coesão, enquanto os livros do último estariam cheios de “enxertos”. O escritor implicava com o bruxo de Cosme Velho. Na biografia O Velho Graça, Dênis de Moraes conta um episódio incômodo para um autor que se pretendia progressista e livre de preconceitos. Graça, que “gostava de escandalizar o interlocutor”, segundo o biógrafo, deu ao amigo Aurélio Buarque de Holanda, em dois dias, duas avaliações opostas de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Na primeira, usou o adjetivo “formidável”. Na segunda, disse que era uma “porcaria”, obra de um “negro burro, metido a inglês, a fazer umas gracinhas chocas”.

O que distanciava Graciliano de Machado era principalmente a crença do alagoano em seu primeiro mandamento literário. Um escritor, dizia, “tem o dever de refletir sua época e iluminá-la ao mesmo tempo”. Machado, acrescentou, “não foi assim”. Mesmo antipatizando com o autor, Graciliano acabou elegendo Dom Casmurro entre os dez melhores romances brasileiros numa lista feita para a Revista Acadêmica. Shakespeare, numa outra conversa com Aurélio, também levou bordoadas, por ter criado Hamlet, “aquele personagem sem lógica e absurdo”. O biógrafo Dênis de Moraes, diante de tantas provocações, conseguiu resgatar cinco entrevistas esclarecedoras sobre suas opiniões contraditórias e episódios anedóticos – entre eles o do encontro casual com Getúlio Vargas, em 1937, na deserta rua Barão do Flamengo. O presidente dava suas voltas antes de dormir e cumprimentou o escritor com um “boa noite”, para receber de voltar o silêncio de desprezo de quem havia sido preso como subversivo pelo ditador. “Quem contou foi Antonio Carlos Villaça”, diz Moraes.

Sorte de Getúlio que o velho Graça ficou em silêncio. Poderia ser pior. De acordo com o biógrafo, “ele costumava soltar palavrões em ocasiões impróprias”. Apesar da boca suja, só saía à rua de terno (tinha 12, todos parecidos) e gravata, colarinho engomado e sapatos cuidadosamente examinados com um pano em sua parte interna (talvez pelo trauma de ter caminhado uma semana com um prego a lhe espetar o calcanhar sem se dar conta). Era uma de suas manias, além de fumar quatro maços de cigarros por dia e lavar as mãos mais vezes do que o bilionário Howard Hughes, vítima de misofobia. Talvez o contato com germes do passado explique a higienização. Nos anos 1940, sem dinheiro, numa época em que o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) recrutava intelectuais para escrever na revista Cultura Política, Graciliano cedeu ao Estado Novo e trabalhou como revisor da publicação.

O escritor era contra transformar a literatura em instrumento de propaganda política. Tinha aversão ao romance panfletário e à interferência partidária na atividade dos literatos. O romance social da geração dos anos 1930 não atingiu as massas , disse na entrevista a Newton Rodrigues. “Mesmo em seu melhor livro, Memórias do Cárcere, ele não se coloca como ideólogo ou libertário, mas como autor de uma obra comprometida com a condição humana”, sustenta seu biógrafo.

A última parte de Garranchos, coletânea de artigos, discursos e manifestos de Graciliano escritos após sua filiação ao Partido Comunista do Brasil, é uma prova de sua independência como autor. O organizador do livro chama a atenção para uma crônica que ele escreveu sobre o líder comunista Luís Carlos Prestes, em janeiro de 1949, no jornal Classe Operária, na qual o escritor deixa o mito de lado para tratar do homem. “Resolvi escrever minha tese justamente para entender como um escritor que havia sido preso pelo regime de Vargas passou a colaborar com uma revista patrocinada pelo Estado Novo”, conta Mio Salla. Ele descobriu que, apesar do cunho político e partidário de seus discursos, até neles Graciliano elaborava frases com o cuidado dos relatórios enviados ao governador de Alagoas, que tanto impressionaram Augusto Schmidt em 1929.

O acadêmico, em suas pesquisas, acabou localizando não só os textos que Graciliano assinou com pseudônimos como 30 entrevistas suas que pretende editar no próximo ano, quando serão lembrados os 50 anos da morte do escritor (no dia 20 de março). Elas serão publicadas pela Record, a mesma que agora lança Garranchos.

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