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Biografia de Graciliano Ramos ganha edição com novos dados e imagens

Publicado em 20 d outubro d 2012

2012: 120 anos de Graciliano    O Velho Graça, Boitempo Editorial

O Globo
Por SUZANA VELASCO
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‘O velho Graça’, de Dênis de Moraes, é relançada após 20 anos com caderno iconográfico e informações de entrevistas do escritor

Vinte anos depois de publicada pela José Olympio, a biografia “O velho Graça”, de Dênis de Moraes, ganha uma nova edição da Boitempo, que inclui acréscimos ao texto e um caderno de 33 imagens, entre fotografias, cartas, bilhetes, desenhos e capas de livros do escritor Graciliano Ramos, o biografado. Autor de outras duas biografias — de Henfil e Oduvaldo Vianna Filho —, Moraes fala de seu processo de pesquisa, que continuou nas últimas duas décadas, revelando novos documentos sobre Graciliano, e das facetas do escritor para além do romancista.

Quais foram os acréscimos na nova edição de “O velho Graça”?
Dois acréscimos me parecem significativos. Consegui localizar as cinco entrevistas expressivas que Graciliano concedeu ao longo da vida. Ele era esquivo e costumava driblar o assédio de repórteres dizendo que não tinha nada de útil a dizer. Os jornalistas Francisco de Assis Barbosa, Homero Senna, Newton Rodrigues, João Condé e Joel Silveira, na década de 1940, conseguiram a proeza de dobrá-lo e obtiveram declarações interessantes sobre seu processo de criação (reescrevia obsessivamente os textos e cortava as “gorduras”, com uma régua guiando seu lápis implacável); o papel do escritor na sociedade (ressaltava que a literatura deve preservar sua autonomia frente à política, sem deixar de refleti-la); e suas preferências literárias. A entrevista a Homero Senna foi feita em caminhada pelo Centro do Rio, na qual Graciliano parou em dois bares para tomar cachaça. Depois da segunda ou terceira dose, soltou a língua, revelando, por exemplo, ser leitor sistemático de dicionários, para aumentar o seu repertório de palavras. Outro acréscimo relevante foi a carta que Graciliano chegou a redigir e jamais enviou ao então presidente Getúlio Vargas, em 1938. Um desabafo sobre as dificuldades enfrentadas durante e depois do período da prisão (entre 3 de março de 1936 e 10 de janeiro de 1937). A carta, de uma lauda, era respeitosa, ainda que com algumas ironias, como, por exemplo, ao qualificar Vargas como “meu colega de profissão”, numa alusão ao ingresso do ditador na Academia Brasileira de Letras com apenas um livro de discursos. É evidente que elegeu Vargas como destinatário numa tentativa de questionar o chefe do regime que o encarcerara sem processo ou culpa formada.

Você poderia contar um pouco do processo de elaboração do livro? Na introdução, você fala de seu contato com a literatura de Graciliano Ramos na escola. Em que momento isso se tornou um projeto concreto?
O processo de elaboração de uma biografia é como estar diante das peças de um quebra-cabeça jogadas no chão, ciente de que seu trabalho só terá êxito se você conseguir remontá-las, pacientemente, até que se tornem uma espécie de mosaico que reflita, em grandes linhas, a vida do biografado. Digo “grandes linhas” porque nós sabemos que a complexidade de uma vida não caberá em um livro, por mais completa que seja uma boa biografia. Ainda mais no caso específico de Graciliano, que morreu aos 60 anos e vivenciou pelo menos 120, tantas foram as suas experiências. O ímã mais forte que me atraiu até ele foi a percepção de que era pouco conhecido o seu outro lado para além do romancista. Ou seja, o seu mundo íntimo, familiar e social, seu modo de vida, bem como as circunstâncias e vicissitudes que acabaram definindo seu perfil existencial e intelectual. Refiro-me à infância atormentada pelas incompreensões dos pais e dos outros; à juventude embalada pelos sonhos literários que esbarravam nas exigências cotidianas numa cidade do interior nordestino; os dois anos como prefeito de Palmeira dos Índios; a prisão por dez meses e dez dias sem sequer ser interrogado; a difícil reconstrução da vida familiar e profissional no Rio, após o cárcere, em meio à aclamação como escritor; as tensões durante a militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Que tipo de pesquisa foi necessária para entender o contexto social e político em que viveu Graciliano?
Foi uma pesquisa abrangente, durante mais de dois anos, que envolveu dezenas de entrevistas com amigos, familiares e contemporâneos (hoje isso seria impossível, pois, infelizmente, muitos deles já não está mais entre nós), consultas a arquivos públicos e privados no Rio de Janeiro, São Paulo e Maceió, amplo estudo bibliográfico de e sobre Graciliano, releituras de sua obra e buscas em coleções de jornais nos quais colaborou. Há 20 anos não havia internet e nem arquivos multimídias, como os agora existentes; as limitações eram bem maiores. Como disse certa vez o escritor Fernando Morais, “fazer biografia no Brasil é coisa para estivador”, dadas as limitações, tais como recursos escassos para pesquisas prolongadas; acervos em estado inadequado de conservação e acesso complicado; versões conflitantes apresentadas pelas fontes, exigindo exaustivas verificações para se chegar à veracidade; mercado editorial ainda restrito em termos nacionais, etc. Mas, no que concerne a Graciliano, devo dizer que encontrei comovente solidariedade por parte de sua família e das testemunhas de sua trajetória. Não apenas obtive depoimentos esclarecedores, como também fotos, cartas, bilhetes e livros que foram de extrema valia. E mais sorte ainda tive por contar com a ajuda de duas pessoas, a quem recorria quando precisava dirimir dúvidas ou esclarecer episódios: Heloísa de Medeiros Ramos, sua viúva, e Paulo Mercadante, amigo e advogado do escritor.

Você afirmou, ao terminar a biografia de Henfil, que sua trilogia de biografias de intelectuais de esquerda se devia à vontade de “mostrar o imaginário do homem de esquerda”. Como história de uma vida, cada biografia é singular. O que você reconhece em seus biografados como um imaginário comum ao homem de esquerda?
Os três intelectuais que escolhi para biografar — Graciliano, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha, e o cartunista e chargista Henfil —eram homens comprometidos com as lutas pela emancipação social e pela construção de um outro mundo possível, mais justo e igualitário. Suas obras, com temáticas e campos de expressão distintos, fazem opções inequívocas pela condição humana e contra a mercantilização da vida. Daí eu sublinhar que absolutamente não foi casual que tenham se filiado a partidos de esquerda para dar vazão às suas aspirações militantes (Graciliano e Vianinha no PCB, e Henfil no PT). O engajamento dos três me permitiu repensar a própria trajetória da esquerda brasileira em décadas de grande efervescência (de 1930 a 1980), realçando a vinculação de suas criações estéticas às realidades sociopolíticas que desejavam transformar.

Como analisa a relação de Graciliano com o Partido Comunista, que foi muito criticada?
Graciliano filiou-se ao PCB em 1945, no clima de abertura democrática e esperanças que se seguiu à vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Ele acreditava firmemente que o socialismo era o caminho para a justiça social. Os problemas dentro do partido surgiram com o acirramento da Guerra Fria e a imposição pela União Soviética do realismo socialista como padrão estético. O realismo socialista era uma aberração, pois submetia a literatura e as artes ao dogmatismo e ao patrulhamento ideológico. Essa desastrosa política resultou em romances panfletários e desprovidos de significação. Graciliano reagiu ao stalinismo cultural, pois não admitia a tutela ideológica sobre a criação literária. Essa posição de independência intelectual lhe custou incompreensões e críticas internas no partido, mas ele não recuou. Preferiu caminhar no fio da navalha, entre a fidelidade conceitual ao socialismo e a oposição às teses dogmáticas. Não abandonou o ideário marxista nem discrepou publicamente do PCB, mas não se submeteu ao realismo socialista. Ele entendia, lucidamente, que, por mais solidários que sejam às causas populares, escritores e artistas não podem sufocar suas inquietações, nem se conformar que o partidarismo lhes indique as ferramentas do ofício. Foram anos difíceis para Graciliano, coincidindo com os problemas de saúde que lhe foram minando as resistências físicas.

A certo ponto do livro, Graciliano dá uma indicação de que a revolução seria incompatível com a literatura. Em sua pesquisa, você sentiu essa tensão entre mundos na vida de Graciliano? O fato de ele ter aceitado ser prefeito, por exemplo, parece curioso. Assim como a não resistência na prisão.
Precisamos separar as coisas. De um lado, Graciliano sustentava que a literatura não pode ser reduzia à ideologia, pois a especificidade do trabalho criativo se sobrepõe às exigências políticas imediatas e aos fervores revolucionários. De outro lado, a política sempre o atraiu muito, desde o noticiário sobre a Revolução Russa de 1917, da qual se inteirou pela assinatura de jornais do Rio que chegavam de trem, com enorme atraso, a Palmeira dos Índios. Autodidata em idiomas desde a adolescência, ele conseguia ler textos de Marx e Lenin em francês, através de encomendas pelo reembolso postal a livrarias cariocas que importavam títulos estrangeiros. Embora ainda não fosse comunista, logo se aproximou de ideias libertárias. A paixão política o fez aceitar a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios, depois de receber apelos de muitos frequentadores da sua loja de tecidos, que o viam como uma reserva moral e de honradez na cidade, e também em resposta aos boatos de que relutava disputar a Prefeitura com medo de perder. A sua administração ainda hoje é considerada uma referência de administração séria, honesta e empreendedora. Combateu privilégios, acabou com a corrupção e o endividamento público, priorizou obras nos bairros pobres e na periferia, reformou escolas públicas, fez cumprir o Código de Posturas para frear a desordem urbana que imperava na cidade. Ficou dois anos do cargo e aceitou o convite do governador de Alagoas para a Imprensa Oficial em Maceió, depois de ter escrito, com estilo literário, os célebres relatórios de prestação de contas na Prefeitura Quanto à sua prisão pelo Exército em Maceió, foi vítima de delações por se opor à escalada repressiva que se seguiu à malsucedida insurreição comunista de novembro de 1935. A meu ver, Graciliano equivocou-se ao supor que poderia não ser preso, apesar de alertado por amigoamigos de que corria riscos. Ele talvez tenha imaginado de que, se detido, logo seria posto em liberdade, por não ser subversivo. Pagou caro pelo erro de avaliação. Só escapou da morte no presídio da Ilha Grande porque sua mulher, Heloísa, mobilizou amigos influentes como José Lins do Rego e José Olympio para intercederem em seu favor junto ao gabinete de Getúlio Vargas.

Em outro momento, Rachel de Queiroz diz que Graciliano Ramos “raramente externava as reações”. Essa imagem seca do escritor ficou marcada como uma de suas principais características, repetida mesmo por quem nunca tenha lido sobre ele. Na construção da biografia, foi difícil se afastar de arraigadas como essa?
Foi encantador conhecer o verdadeiro Graciliano, por trás das lendas e mitos forjados pela chamada “história oficial”. Apresentavam-no como intratável, ríspido, fechado em si mesmo. Os depoimentos que obtive de amigos, familiares e contemporâneos foram unânimes em desvelar um outro Graciliano. De fato, era um homem contido, avesso a externar suas emoções, às vezes irritadiço e pavio curto. Quem melhor o definiu foi o jornalista e escritor Moacir Werneck de Castro, seu amigo, ao dizer que Graciliano escondia-se talvez porque tivesse vergonha de sua bondade e de seus atitudes sentimentais. Aos que privavam de sua intimidade ou precisavam de sua ajuda para causas justas, ele era solidário, paciente e compreensivo. Tinha uma forma própria de demonstrar afeição, que se explicitava em detalhes às vezes sutis, como levar maçãs para casa, por saber que era a fruta preferida de sua mulher. Ao mesmo tempo, adorava causar espanto ou provocar interlocutores que não o conheciam bem com seus juízos peremptórios. Como no dia em que chocou os moradores da pensão no Catete onde vivia ao dizer, com sorriso matreiro, que Machado de Assis (a quem admirava como escritor) era “um negro besta metido a inglês”! O mesmo homem que diziam ser ensimesmado foi o responsável por inestimáveis conselhos a jovens que o procuravam com originais de romances e contos, como aconteceu com os escritores Guilherme Figueiredo e Alina Paim. Ambos, diante de mim, se emocionaram ao recordar a delicadeza do romancista consagrado ao ajudá-los na iniciação literária, com conselhos e correções de seus textos.

A biografia mostra que em diversos momentos Graciliano parece não acreditar em sua literatura. Seria espécie de desdém, autoironia, ou mesmo vaidade excessiva – ou uma mistura de tudo isso? Você vê nas circunstâncias pessoais ou históricas as razões para essa atitude?
Ele se autodepreciava da boca para fora. Sabia perfeitamente de seu valor, sem cultivar ranços de vaidade ou narcisismos. Mas dissimulava os sentimentos, como sertanejo tímido e desconfiado que era. Ocultava-se na timidez e no excesso de autocobranças, que nada mais eram senão a evidência de sua férrea determinação de aprimorar-se e superar-se como escritor. Uma das mais evidências de convicção sobre o valor de seus escritos pode ser encontrada numa carta a Heloísa, em 1932, a propósito do clássico São Bernardo, que então finalizava. Em seu estilo inconfundível, em que imagens enxutas impedem derramamentos, confessou: “Continuo a consertar as cercas do S. Bernardo. Creio que está ficando uma propriedade muito bonita. E se Deus não mandar o contrário, qualquer dia terei que apresentá-la ao respeitável público. O último capítulo, com algumas emendas que fiz, parece que está bom.” Cabe ressaltar que poucos escritores de sua geração demonstraram tanta consciência sobre o papel social de um homem de letras quanto Graciliano. Em diversos textos analisou os imensos desafios postos aos escritores em um país periférico e desigual, sublinhando a enorme dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de sobreviver dignamente apenas da literatura.

Depois de ter escrito a biografia, mudou algo em sua visão sobre a literatura de Graciliano Ramos?
Pelo contrário, fiquei ainda mais convencido da extraordinária contribuição de Graciliano ao realismo crítico, com uma obra profundamente humanista e crítica ao poder e às opressões de qualquer natureza. Ele jamais renunciou aos valores ético-políticos e aos vínculos de solidariedade para com os que sofrem e são explorados. O professor Alfredo Bosi, na apresentação da nova edição de O velho Graça, resumiu esplendidamente o legado de Graciliano, ao salientar que seus livros se dirigem “a todos aqueles que procuram na literatura a expressão de nossa humana condição trabalhada na luta sem trégua pela palavra justa”. A avaliação de Bosi me faz pensar na frase emblemática de Graciliano ao falar de sua missão literária: “A arma do escritor é o lápis”.

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Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)