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Publicado em 28 d outubro d 2012

2012: 120 anos de Graciliano    

Gazeta de Alagoas
Por CARLA CASTELLOTTI
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O pesquisador paulista Thiago Mio Salla fala de seu contato com a obra de Graciliano Ramos e conta como, após sete anos de estudos, conseguiu reunir 81 textos inéditos do autor de S. Bernardo

Tudo começou quando Thiago Mio Salla, ainda estudante do ensino médio, leu Vidas Secas. O impacto da obra de Graciliano Ramos foi tamanho que ele não mais conseguiu se desvencilhar do escritor alagoano. Tanto que a obra do autor de São Bernardo tem lhe servido de objeto de pesquisa desde os tempos da graduação em Comunicação Social, na Universidade de São Paulo (USP).

Hoje aos 32 anos e já no segundo doutorado, o escritor continua em sua pauta – agora, Salla estuda como a literatura de Graciliano é capaz de influenciar uma nova geração de autores portugueses e de países africanos de língua portuguesa.

Responsável pela organização dos textos que compõem Garranchos, volume que reúne 81 escritos inéditos de Graciliano, Thiago Mio Salla conta que resolveu se debruçar sobre a obra do autor nascido em Quebrangulo quando, na faculdade de Jornalismo, passou a estudar o gênero da crônica.

Na introdução à coletânea, o pesquisador ressalta que o principal mérito da antologia é apresentar aos leitores de Graciliano as bases sobre as quais o autor de Angústia construiu sua literatura, crua e sem metáforas. Em entrevista à Gazeta, Salla fala mais sobre o processo de desenvolvimento do volume. Confira.

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Qual o primeiro livro que você leu do Graciliano? O primeiro contato com a obra dele foi assim tão impactante?
Sim. O primeiro livro que li do Graciliano, como todo aluno de ensino fundamental e médio, foi Vidas Secas. Pelo menos na época em que eu era estudante, aqui em São Paulo, a gente tinha como horizonte de livros a lista da Fuvest, do vestibular da USP. Não sei como anda hoje a lista, mas o interesse escolar perdurou e aí foi só um detonador para outras leituras, como por exemplo São Bernardo, que acho que é um dos livros dele de que mais gosto. Aí vai tendo um desdobramento e depois vieram Angústia, Caetés, os romances… E já na graduação – eu também fiz Letras – tive uma carga maior de leitura.

Desde sua monografia no curso de Comunicação Social, na USP, você investigava os escritos de Graciliano. Como as coisas acabaram caminhando para a reunião dos textos que compõem Garranchos?
Em relação ao contato inicial, ainda na graduação, em Comunicação Social, eu me interessei pelo gênero da crônica, e dentro do gênero pensei no Graciliano, cujas crônicas integram uma parte da produção dele pouquíssimo estudada. Então poderia ser um filão interessante e acabei entrando em contato com esse universo. No início dessas pesquisas, ou mesmo da leitura dos livros publicados, comecei a perceber que existiam algumas lacunas – e aqui em São Paulo temos acesso ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), que é onde está reunido o Arquivo Graciliano Ramos e boa parte de sua produção. Paralelamente à leitura das obras publicadas, eu passei a consultar também o arquivo e comecei a observar que lá existiam alguns textos que não faziam parte dessa obra publicada, e isso me chamou atenção. Foi outro detonador.

Isso tudo lhe serviu como mote para as pesquisas que você desenvolve na universidade?
Aí eu entrei no mestrado e no doutorado e o meu objetivo foi estudar um conjunto de textos do Graciliano que havia sido publicado numa revista getulista da década de 1940, chamada Cultura Política. E, como pesquisador, pensei: “Bom, para estudar os textos que Graciliano publicou nessa revista eu preciso ter uma dimensão de toda a produção que Graciliano publicou na imprensa”. Isso era difícil de conseguir tendo por base apenas o Linhas Tortas e o Viventes das Alagoas, livros nos quais boa parte dos textos não dão sequer a informação do jornal em que aquele escrito foi originalmente publicado. Me valendo das biografias que existem sobre Graciliano, e de algumas pistas que existiam, eu fui pesquisando uma série de periódi-cos no Brasil todo – e inclusive visitei Alagoas algumas vezes.

Eu ia perguntar justamente se você tinha vindo a Alagoas em busca de alguns desses textos…
Eu pesquisei muito no Arquivo Público; encontrei muita coisa, mas o estado de conservação dos periódicos já não era tão bom. Em Maceió, pesquisei no Arquivo Público e no Instituto Histórico e Geográfico, onde, aliás, existia a referência de um texto que Graciliano tinha publicado em um jornal chamado Correio de Maceió, em 1909. O professor Moacir Medeiros de Santana consultou esse texto, mas, quando fui tentar consultar, o periódico não tinha condição de ser manuseado. Fui também à Casa-Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios, onde consegui dois textos importantes para a obra.

Quais?
Um é uma cópia do manuscrito incompleto do conto O Ladrão. A casa-museu tem uma cópia (do conto), mas está faltando uma página. O manuscrito integral está na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob os cuidados do professor Wander Melo Miranda; é ele, aliás, quem assina as edições da Record sobre Graciliano. Ainda que a cópia do conto na casa-museu estivesse incompleta, ele me serviu de referência inicial para daí encontrar o texto todo. Tem outro manuscrito que também encontrei na casa-museu que se chama Livro Inédito II, que tem uma relevância cultural muito grande, porque é um texto no qual Graciliano faz referência a um concurso de que ele participou e julgou um livro, Sagarana, do Guimarães Rosa. Para estudiosos de literatura como um todo, esse texto tem uma relevância porque nada mais é do que Graciliano escrevendo sobre a obra de outro autor do século 20.

Qual a principal dificuldade em reunir esses textos?
A primeira dificuldade foi a falta de informação. Muitas vezes eu tinha o relato de que Graciliano tinha colaborado com uma certa publicação e eu passava a olhar a esmo a coleção daquele jornal para ver se encontrava alguma coisa – e eu ia fazendo isso sistematicamente. Então essa foi uma grande dificuldade. Outra é a precariedade dos acervos. Você se deparava com periódicos impossíveis de serem consultados.

Principalmente aqui em Alagoas?
Em Alagoas também, mas isso é um problema nacional. São reflexos de como o país trata a cultura e trata a memória. Se você for olhar em longo prazo, é como se o país apagasse a memória dos grandes vultos nacionais. E outro problema com o qual eu também me deparei foi ao consultar os jornais comunistas, a colaboração de Graciliano com a imprensa comunista – o que é um problema anterior. Porque como existia a censura, boa parte das coleções que existem dos jornais comunistas são falhas, têm vários “buracos”. Então eu precisava ir a vários acervos diferentes para ver se encontrava um número que estava faltando. E como os próprios jornais (comunistas) circulavam de maneira precária, era difícil para a Biblioteca Nacional recolher tudo isso.

Aproveitando que você falou do período comunista do Graciliano, a neta do autor, Elizabeth Ramos, em entrevista à Gazeta, negou que ele fosse comunista. Ainda assim, na introdução de Garranchos, você descreve Graciliano como um militante disciplinado e dá conta de que ele chegou a se filiar ao PCB, não é?
Sim. A partir de 1945, quando o Partido Comunista entra na legalidade, no final do Estado Novo, o Graciliano assina uma ficha ingressando no Partido Comunista, a qual fora levada a ele pelo próprio Prestes, presidente do partido. Então, talvez o que a Beth Ramos tenha te falado é que antes disso (da assinatura da ficha), ou mesmo na época em que ele foi preso, não existia uma acusação formal de que ele era realmente comunista. Existia uma simpatia pelo ideário, mas ele entra no partido somente em 1945. Até então seria falso você atribuir um comunismo a ele. Ele entrou no Partido Comunista em 1945 e, nos anos seguintes, em 1946, por exemplo, teve uma participação ativa, tanto que foi candidato a deputado pelo PCB pelo Estado de Alagoas. Se você pegar o texto Carta aos Alagoanos, ele se apresenta aos eleitores alagoanos. Ele teve uma votação pífia, mínima, em Maceió.

Então quando Graciliano foi preso, na época em que lança Angústia, ele ainda não era comunista?
Não. Ele não foi preso porque era comunista, como algumas pessoas falam. Na verdade, ele foi preso sem nenhum processo contra ele, especificamente por questões locais e pela simpatia da esquerda que ele tinha. A monstruosidade da prisão dele também está aí; ele ficou preso por praticamente um ano sem nenhum respaldo jurídico contra ele.

Na introdução ao volume, você diz que o critério que norteou a reunião dos escritos de Garranchos foi a prévia publicação dos textos em jornais e revistas feita pelo próprio autor. Você não acha que o Graciliano não gostaria de ver em livro alguns desses escritos, já que ele próprio era o maior crítico daquilo que escrevia?
Ele era tão crítico que, se você considerar os nomes que ele dava às seções de jornal para as quais ele escrevia, já mostra o quão ele valorizava esses textos. Como, por exemplo, chamar essas seções de Linhas Tortas, Traços a Esmo, Garranchos. Por outro lado, como o Graciliano se tornou um vulto literário nacional, o interesse pela produção dele só aumen-ta com o passar do tempo, e os estudos também se afunilam e vão demandando outros materiais. Possivelmente ele não gostaria de alguns dos textos, mas justamente os estudiosos de Graciliano, e quem se interessa por cultura brasileira da primeira metade do século 20, esses podem gostar bastante do material reunido.

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O Graciliano cronista é muito mais zombeteiro

Gazeta de Alagoas
Por CARLA CASTELLOTTI
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Na última parte da entrevista, Thiago Mio Salla fala sobre os diferentes gêneros que o escritor alagoano experimentou e da ‘identidade’ que podia ser notada em seus primeiros escritos

Thiago, você poderia apontar uma marca, uma identidade no texto de Graciliano que já se fazia notar mesmo naquilo que ele escreveu ainda sob o pseudônimo X?
A gente tem que levar em conta o gênero em que as coisas são feitas. No caso do cronista X, ou seja, o Graciliano cronista, tem um estilo  bem particular que o difere, por exemplo, do Graciliano romancista. O Graciliano cronista é muito mais zombeteiro, satírico. Enfim, o que é comum entre um e outro é a segurança e a maneira como ele domina os meios de expressão. Isso se percebe desde os textos iniciais. Eles não têm o mesmo mérito literário dos romances e de outras crônicas posteriores, mas você já percebe um escritor que vai se apenhorando dos seus meios e tem uma capacidade expressiva muito grande. Na série de Garranchos, na qual ele assina com o pseudônimo X, você percebe um Graciliano muito mais aguerrido, de tomar a defesa da coisa pública, dos habitantes da cidade… Então é como se ele prenunciasse um Graciliano prefeito, diretor da instrução pública, o que hoje equivaleria a secretário da Educação do Estado. Mais que só o texto, você percebe uma posição diante do mundo. Graciliano foi do debate municipal até que sua atuação vai se ampliando para o universo estadual, e quando ele vai para o Rio de Janeiro, e é preso, seu interesse passa a ser um diálogo nacional.

Você conta que, seguindo recomendações dadas por Graciliano ao seu filho, Ricardo, de nunca publicar sua poesia, ficaram de fora de Garranchos cerca de 60 poemas e sonetos. Você chegou a lê-los? Por que você acha que Graciliano pediu para que essa produção nunca fosse publicada?
No caso especificamente das poesias, o Graciliano, ao longo da vida, renega sistematicamente essa produção. Ele tem todo o direito, como autor, de olhar para esse momento da sua produção e renegar. Eu cheguei a ler grande parte dessas poesias, e nelas você percebe um Graciliano ainda muito preso a modelos simbolistas e parnasianos. Então eu acho que para ele, que na primeira década do século 20 se firmou como um clássico renovador das letras nacionais, retomar essa produção antiga poderia ser tomado como um certo demérito.

Em um trecho de sua introdução, você destaca uma passagem de uma carta de Graciliano para o filho, em que o autor diz que falaria num discurso como escrevia em seus romances. E a pergunta de Graciliano era: “Aceitaria a multidão essa literatura sem metáforas e crua?”. O que você diria, nos dias de hoje, a ele?
Ele estava falando especificamente de um discurso, mas eu acho que cada vez mais esse tipo de discurso que se volta contra a alienação e deixa de lado o que o próprio Graciliano chamava de miçangas literárias, e vai direto ao fulcro das questões, tem um poder de transformação e de acabar com a alienação. Então nesse sentido eu acho que essa postura que ele incita no filho tem um valor muito importante. Ainda mais se você considerar que ali (na carta) ele estava falando num contexto de luta pela assembleia constituinte, de um país que ficou muito tempo dentro de uma ditadura de direita, fascista. Essa postura dele tem um quê de libertação, de anúncio de um mundo melhor, algo jamais condizente com o que ele chama de canalha dos morros. É a própria perspectiva dele de alguém que, como falei em relação à seção de Garranchos, lutava para ter uma boa administração pública. No caso dessa carta, a dimensão disso é ainda maior; ele luta para que o país tivesse uma assembleia constituinte formada por trabalhadores, com uma pluralidade de pessoas que refletisse o próprio país.

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Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas.

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