Meu avô desconhecido
Publicado em 21 d outubro d 2012
Folha de S. Paulo
Por RICARDO RAMOS FILHO
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Graciliano Ramos (de braços cruzados e óculos) em Moscou, em 1952
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Muitos me perguntam, já perdi a conta de quantas vezes respondi, mas não conheci Graciliano. Vim ao mundo no começo do ano seguinte à sua morte, primeiro nascimento na família após a partida do autor alagoano (1892-1953).
Dizem que foi grande a alegria, festejaram bastante a minha chegada. Entusiasmo por pouco não transformado em tragédia; fardo dificílimo carregaria para o resto de minha pobre vida se me batizassem como pretendiam.
No início, aventaram a possibilidade de me homenagear com o nome de vovô, ou o contrário, nunca entendi bem a quem seria o tributo. O fato é que, se tivesse vingado, este texto seria assinado por Graciliano Neto. Felizmente minha mãe preferiu presentear o marido – nasci no dia do aniversário de meu pai e virei Ricardo Filho.
Minha avó Heloísa Ramos, recém-viúva, afeiçoou-se demais a mim. Parentes maldosos, versados em Freud, apressaram-se em diagnosticar tanto carinho como transferência. Nunca me importei, até porque só fui precisar do psicanalista austríaco bem mais tarde. Aproveitei ao máximo o convívio com vó Lozinha. O velho Grace, embora avô desconhecido, acabou por tornar-se íntimo, pois vovó falava nele o tempo todo.
Para mim, era um herói igual aos encontrados nos gibis. Tinha muito do Fantasma, a cadela Baleia era o seu Capeto. Imaginava-o um Tarzan nordestino, encontrava-o no Príncipe Valente e no Robbin Hood. Só imaginando-o em uma Sherwood alagoana, aliando-se aos pobres contra os ricos, consegui entender por que tinha sido preso. Da mesma forma que o Popeye não largava o cachimbo, meu avô não desgrudava do cigarro: era assim que o via em todas as fotos.
Como acontece com a maioria das pessoas, cresci. E, ao entrar em contato com a obra de Graciliano Ramos, mudei minha relação com ele. É claro que fiquei impressionado. Como é que alguém podia assinar um texto sem assinar?
Seu jeito característico de arranjar palavras, tão pessoal na maneira de dizê-las, permitia-me encontrá-lo com facilidade em qualquer página avulsa escrita por ele, mesmo sem identificação.
De certa forma, aquele herói tão próximo afastou-se. O respeito instalou-se e virou reverência. Embora tivesse muito carinho pelo primeiro, o segundo transformou-se em exemplo importante, matéria de estudo, referência.
Ao olhar a foto presente na edição de “O Velho Graça”, de Dênis de Moraes, que está saindo pela Boitempo, vejo o escritor. Recupero misturadas informações lidas e familiares. Ouço minha mãe referindo-se ao mau humor dele nas vésperas de partir para o estrangeiro, provavelmente inseguro ante perspectiva tão assustadora.
Lembro-me do início de “Viagem”, onde ele conta que em abril de 1952 embrenhou-se em uma aventura singular. Foi a Moscou e a outros lugares. Para ele, homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável, não deve ter sido fácil.
Sair de sua toca e entrar em um avião, aparelho assassino, atravessar o oceano e conviver com pessoas diferentes, tendo a necessidade de entendê-las e precisando de intérpretes, encontrar uma polícia que, em vez de levá-lo para a cadeia, como lhe parecia natural, ajudava-o, todas essas experiências novas me parecem marcadas em sua silhueta magra de braços cruzados.
Atento, curioso, divertindo-se com o discurso da menina de sobrancelhas “lobatianas”. Vejo no corpo frágil o esforço físico necessário para estar ali. Talvez por eu conhecer seu destino -em menos de um ano, 20 de março de 1953, estaria morto.
Imagino-o mergulhado em seu humor característico ácido, irônico, inteligente, atento ao que ocorria a seu entorno e tirando suas conclusões. Não encontro o cigarro em seus dedos e sei o quanto deve estar sentindo falta.
Um Dalcídio Jurandir empertigado à sua direita e o amigo Sinval Palmeira, o primeiro à esquerda na foto, também não me parecem confortáveis. Ao vê-lo nessa antiga fotografia em preto e branco, recupero o meu avô desconhecido.
Com carinho e respeito.
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