Blog / Um texto por mês

out.12: Fragmento de um discurso

Publicado em 01 d outubro d 2012

O texto abaixo é parte do discurso de Graciliano Ramos no jantar de comemoração dos seus 50 anos, em 1942, no restaurante Lido – Rio de Janeiro – RJ

Comemoração dos 50 anos de GR no Restaurante Lido:
Na primeira fila, Lúcia Miguel Pereira, Graciliano, Gustavo Capanema, Heloísa, Manuel Bandeira e José Mário Belo.

Senhoras, Senhores,

Vejo-me em situação difícil – e não poderei representar convenientemente este papel. Ler um discurso é ação temerosa: faltam-me elementos para semelhante gênero.

Realmente, se é fácil abraçar um camarada na livraria ou no jornal, dizer-lhe palavras de agradecimento e oferecer-lhe préstimos diminutos, à rua tal, número tanto, acho empresa considerável reunir essas parcelas de gratidão, dar-lhes forma literária, datilografá-las, pronunciá-las com os gestos adequados, em pé, junto a uma mesa.

Fui eu, meus senhores e amigos, esse novelista pescado no sertão de Alagoas por umas cartas que Rômulo de Castro me enviou, de 1930 a 1931, em nome de Schmidt. Desde então ocorrências de vulto me atrapalharam. Seria melhor que eu tivesse continuado a envelhecer na cidadezinha poeirenta, jogando o xadrez e o gamão, tratando dos meus negócios miúdos, ouvindo as intermináveis arengas das calçadas, refugiando-me à tarde na igreja matriz, enorme, onde fiz dezenove capítulos de São Bernardo. Seria melhor. Infelizmente não me foi possível orientar-me. Os acontecimentos forçaram-me a deslocações imprevistas.

[…] tive de escolher um ofício. Caí na literatura: todas as outras portas se fechavam. […]

E aqui estou, depois de muitas quedas e de pequeninos saltos, olhando as paredes do cemitério bem próximo. Nunca tentei elevar-me algumas polegadas. É certo que estraguei papel e tinta, mas procedi assim por motivos de ordem particular. Um vício como outro qualquer. E esforcei-me por escondê-lo.[…]

Deixei o meu povoado cambembe, meti-me em cavalarias altas. Enchi-me de fumaças, vim morar perto da rua do Catete, simulei autoridade e, perigando em conversas inacessíveis ao meu entendimento, encerrei-me grave num silêncio razoável. Escondi uma reles tragédia, cuidadoso, envelheci, afastei-me. E, neste fim de vida melancólico, vejo-me com muitas das pessoas que, em momentos difíceis, me ampararam e disseram a palavra conveniente. Sem esse amparo e sem essa palavra, não estaríamos hoje aqui. […]

É preciso descobrirmos um motivo para esta reunião. Penso, meus senhores e amigos, que a devemos à existência de algumas figuras responsáveis pelos meus livros – Paulo Honório, Luiz da Silva, Fabiano. Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos, porque não sou Paulo Honório, não sou Luiz da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os recursos duma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso aqui me reduzo à condição de aparelho registrador – e nisto não há mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes, que povoam a terra.

IN: BASTOS, Hermenegildo, ALMEIDA FILHO, Leonardo, BRUNACCI, Maria Izabel. Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem. Brasília: Hinterlândia, 2010, p.21-32.

Veja mais na categoria Um texto por mês

CONHEÇA A OBRA DE GRACILIANO RAMOS

  • Caetés (1933)
  • Caetés – edição especial 80 anos (2013)
  • S. Bernardo (1934)
  • Angústia (1936)
  • Angústia – edição especial 75 anos (2011)
  • Vidas Secas (1938)
  • Vidas Secas – edição especial 70 anos (2008)
  • Vidas Secas – em quadrinhos (2015)
  • Infância (1945)
  • Insônia (1947)
  • Memórias do Cárcere (1953)
  • Viagem (1954)
  • Linhas Tortas (1962)
  • Viventes das Alagoas (1962)
  • Garranchos (2012)
  • Cangaços (2014)
  • Conversas (2014)
  • A Terra dos Meninos Pelados (1939)
  • Histórias de Alexandre (1944)
  • Alexandre e Outros Heróis (1962)
  • O Estribo de Prata (1984)
  • Minsk (2013)
  • Cartas (1980)
  • Cartas de Amor a Heloísa (1992)
  • Dois Dedos (1945)
  • Histórias Incompletas (1946)
  • Brandão entre o Mar e o Amor (1942)
  • Memórias de um Negro (1940) Booker T. Washington, tradução
  • A Peste (1950) Albert Camus, tradução

“Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão.”

em carta a Raúl Navarro, tradutor, nov.1937