Arte capenga, pois sim
Publicado em 11 d dezembro d 2012
Diário do Nordeste, Caderno 3
Por FERNANDA COUTINHO
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Arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios – Essa foi a definição dada, em discurso, por Graciliano Ramos (1892 – 1953) à sua produção literária, na ocasião em que parte expressiva da intelectualidade brasileira se reunia, no restaurante Lido, no Rio de Janeiro, para comemorar os 50 anos de vida do escritor. O ano, portanto, era o de 1942, e os leitores de então já conheciam os dramas, as paixões e as muitas vicissitudes de João Valério, Paulo Honório, Luís da Silva, além dos de Fabiano e sua família, de que faz parte Baleia, que os acompanha em seu périplo de agruras e, por vezes, acanhada esperança. Acanhada, menos para a cachorrinha, que alimentava sua existência sonhando à farta com preás gordos. Graciliano já escrevera também “A terra dos meninos pelados”, história voltada para o público infanto-juvenil, em que o mundo das diferenças, representado pelos meninos pelados, tomba de cada página e repercute na sensibilidade dos pequenos leitores.
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Graciliano Ramos: gigante da literatura brasileira tratou de dramas universais em sua obra
No discurso dos 50 anos, o escritor nordestino, com seu jeito desabusado de falar, batizou como estranha a ideia de Augusto Frederico Schmidt de “pedir romance a um sertanejo ocupado em escrituração mercantil, orçamentos e relatórios”, relembrando, ainda, ter sido José Olympio, quem, em carta, lhe exigira os originais de “Angústia” (1936).
A liberdade, vital para todos os indivíduos, também o é para o escritor, que necessita de independência na sua tarefa de redesenhar a realidade pelas veredas da ficção, deixava entrever Graciliano Ramos em sua fala aos que o prestigiavam naquela noite festiva.
Na realidade, naquele momento, ele já era um nome de prestígio em nossas letras, tanto assim que, ao final da celebração, recebeu o prêmio da Sociedade Felippe D´Oliveira, pelo conjunto da obra. Ressalte-se que, antes, em 1937, havia recebido o Prêmio de Literatura Infantil do Ministério da Educação, pela história dos meninos pelados.
De si para si mesmo, Graciliano, porém, não se enquadrava em um retrato de escritor, talvez pelas tramas do acaso que o levaram ao cenário literário. A passagem se deu, como sabemos, pela leitura, por Schmidt, dos célebres Relatórios de sua gestão como prefeito de Palmeira dos Índios. Aqueles Relatórios tão cuidadosamente preparados encobriam um escritor e escritor desses meticulosos, capaz de ficar horas a fio matutando na melhor palavra, na expressão mais adequada para encaixar à perfeição o querer dizer e o dito. Esse deve ter sido o pensamento do poeta-editor. E isso foi feito por Graciliano, repetidas vezes, ao lançar na página em branco um sentir-se logrado por uma mulher; pelo patrão ganancioso, feito todo ele de contar e recontar notas sebentas de dinheiro, quando não, moedas azinhavradas, da cor da avareza; pelas nuvens vasqueiras do céu descampado, promessa de seca e destruição.
Como que, então, Graciliano se auto-menosprezava se de seu texto emanava uma ética de construção, calcada nesse esmero em tratar as palavras? Nesse particular, seguia, por intuição, as pegadas de Gustave Flaubert, a quem Madame Anne Justine Flaubert, sua mãe, advertia: “A raiva das palavras vai terminar secando seu coração”.
Como poder se sentir um deslocado no mundo da escrita se em seus livros se encontra mais profundo sentido de humanização? Se o que buscava era “uma demonstração de solidariedade a todos os infelizes que povoam a terra”?
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Memória
Depois dos romances, publicou contos e também obras memorialísticas. “Infância” (1945) é um relato em que se apresenta um Graciliano, menino de vida agreste. Além da malvadeza da seca, enfrentou, a princípio, e com bastante sofrimento, a aridez das palavras: era difícil para seus olhos interrogativos reunir letras e sons e transformá-los em algo que fizesse sentido. Sua família, e a escola de então, de modo geral, faziam da vida do aprendiz de leitor uma verdadeira tortura. Contudo, à custa do desafio pessoal e do autodidatismo, iria se transformar em Graciliano Ramos, um de nossos maiores escritores. Daí não ser verossímil para seus leitores suas indagações com sabor de pesadume, palavra de sua predileção.
A grande verdade é que, nos 120 anos de seu nascimento, basta dizer o nome Graciliano, e todos saberão que se trata do escritor essencial, que, nascido no Nordeste, falou de sua região e também de outras regiões, ásperas e sutis, capazes de identificar a paisagem humana.
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FERNANDA COUTINHO é Doutora em Teoria Literária (UFPE), professora do Departamento de Literatura da UFC e autora do livro “As imagens da infância em Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry”
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