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O desarranjo interior em Vidas Secas

Publicado em 12 d janeiro d 2013

Do blog Transversos
Por ALINE SILVA
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“(…) jamais o homem deixa de estar num estado crítico”.
(Kierkegaard)

Quase oitenta anos separam o tempo atual e a publicação do mais célebre dos livros de Graciliano Ramos Vidas Secas. O enredo centrado na família de migrantes nordestinos em busca de refúgio contra a seca permite entrever, em momentos vários, as lembranças recorrentes dos personagens: Fabiano – a cadeia e o soldado amarelo, a morte de Baleia, as contas erradas do patrão; Sinhá Vitória – a seca, a ausência de uma cama confortável como a que viu, certa vez, na casa de seu Tomás da bolandeira; a cachorra Baleia – ossos, preás e brincadeiras com os meninos. O menino mais velho e o menino mais novo mantêm uma relação peculiar com a lembrança: o primeiro mistura maus tratos e acomodação à natureza circundante, reflexões várias e escassez de palavras; o segundo, deseja e projeta mais do que se recorda, orgulha-se do pai, querendo ser à sua imagem e semelhança, almeja a admiração do irmão mais velho e de Baleia.

Ao lado das lembranças involuntárias pairam desejos irrealizados, por vezes irrealizáveis, de satisfação pessoal relacionados a conquistas de ordem material por parte dos adultos, que elevariam os personagens Fabiano e Sinhá Vitória, segundo parâmetros presentes na reflexão empreendida por eles, à condição de seres humanizados. Necessário observar que, embora possa parecer que tais conquistas estejam intimamente ligadas a minúcias do ponto de vista filosófico, sem tal empoderamento, os seres em questão ficam relegados à condição de marionetes em um sistema econômico e social usurpador, capaz de extirpar-lhes identidades, suprimir-lhes subjetividades, transformando-os em massa a ser consumida pelas contingências, muito mais culturais que naturais. Para os meninos, os desejos irrealizáveis envolvem aprendizagem e curiosidade, como no episódio em que o menino mais velho quer compreender o sentido da palavra “inferno”, e admiração, como na tentativa de montar o bode por parte do mais novo, em busca de reconhecimento por sua atitude de bravura.

A angústia advinda da incerteza em relação ao presente e ao futuro invade a narrativa não só quando a família se põe a caminho na tentativa de encontrar um lugar melhor para viver, mas também quando a dificuldade comunicativa impede o desenvolvimento das relações em inúmeros momentos, relação marcada por sons guturais, palavras curtas, aspereza afetiva, secura. Os meninos se angustiam na e pela falta de instrumentos que balizem o trato linguístico e interpessoal, o mais velho manga do mais novo, que se ressente e busca provar que sabe fazer algo de importância. Os pais não reservam espaço às crianças, sequer as nomeiam, reproduzindo comportamento naturalizado na relação familiar, em que o respeito se garante no cascudo. Mais uma vez, a vulgarização de uma expressão da cultura. Por sua vez, a ausência de nome próprio que se aplique às crianças se estende ao trato do narrador para com elas, numa atitude de refletorização, na qual o narrador, tido por onisciente, absorve e replica o olhar dos personagens sobre o mundo.

O menino mais velho depara-se com sua impotência diante de um mundo que lhe parece injusto. Tem como característica a curiosidade que move as mentes inquietas e é constantemente punido pelas manifestações de seu espírito investigativo. Reconhece a escassez do vocabulário, mas tenta lutar com as armas que tem e, ao reconhecer-se sem munição para combatê-la, sucumbe, triste, reconhecendo o poder de fogo da ignorância. Como dizia o poeta itabirano, “lutar com palavras é a luta mais vã”. O que se dirá de lutar com a ausência delas? Depara-se o mais velho com o desespero inconsciente de ter um eu, uma certa insatisfação mal digerida, em parte, claro, pela própria incapacidade de compreensão do que vive em função da imaturidade cognitiva, afetiva, intelectiva próprias da idade.

Defrontar-se com a contingência é o que marca o menino mais novo. Repleto de planos aparentemente infalíveis – pelo menos, o são para ele -, o caçula, movido à adrenalina, testa-se no intuito de surpreender a todos, para obter deles admiração. Não alcança o objetivo. Frustra-se frequentemente, sente-se menor, não apenas na idade ou na estatura, e tem por experiência o desespero de não querer ser o que é. Quer ser um outro, quer ser Fabiano, não o Fabiano que se enxerga a si mesmo, mas o Fabiano imaginado pelo garoto.

Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para trás, preso debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um círculo enorme em torno da cabeça.”

Fabiano acordava à noite “agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido pelas pulgas, conjecturando misérias”, enquanto Sinhá Vitória confundia memória e angústia: “Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido?”. O desespero amalgama Fabiano e Sinhá Vitória na figura de desejarem ser eles próprios e na impossibilidade de o serem devido a questões que ultrapassam as interiores e penetram no universo das questões sociais. Os meninos, personalidades em formação, como já mencionado, constrangem-se, mas não conseguem expressar as dores. Dotados de diferentes interesses e inteligências, o mais novo almeja desenvolver seu lado cinestésico; o mais velho demonstra interesse por questões de ordem linguística. Nenhum dos dois, no entanto, consegue conciliar o desejo de ser eles próprios e aquilo que podem verbalizar ou realizar.

Nesse constante conflito entre o que reconhece em si mesmo e o que gostaria de ser, Fabiano oscila, de forma extremamente dinâmica, entre o ser homem e o ser bicho, refletindo o desassossego que reside no contorno tênue de suas características. Ora enxerga-se vitorioso, vaqueiro e chefe de família: “-Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta”. Ora, como um trabalhador alugado, como diria Paulo Honório de São Bernardo: “E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros”. Identifica-se com o bicho, ora para negar-se, ora para afirmar-se. “Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera”. “-Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades”.

Nessa oscilação do olhar de si e para si, Fabiano constrói sua identidade na relação com o meio inóspito, secura da natureza e receio dos homens. Interagia muito bem apenas com os animais, tal como o matuto Casimiro Lopes, de São Bernardo, que “corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão”. Fabiano, corajoso no trato com animais e encolhido no trato com humanos, descobre nos últimos, a cada oportunidade, mais um motivo para ressabiar-se: o patrão que erra nas contas, o soldado amarelo que agride e aprisiona – ambos representantes de uma estrutura de poder corroída pela falta de paridade e pelo esmagamento da classe trabalhadora.

À maneira da relação entre Casimiro e Paulo Honório, Fabiano estabelece com Sinhá Vitória uma comunicação cúmplice e silenciosa, expressa por olhares e trejeitos, marcada pela inapetência verbal. Tal forma de comunicação permeia toda a narrativa, deixando traços singulares na consolidação do relacionamento do casal, esquivando-se, no entanto, da simbiose Casimiro-Paulo Honório, quando o leitor se depara com rusgas matrimoniais causadas pelas poucas palavras do inábil Fabiano. “Cada qual como Deus fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto”.

Sinhá Vitória, embora aborrecida com certo comentário do marido que a comparou a um papagaio trôpego por usar desajeitadamente sapatos de salto alto, não se projeta de forma miúda, não se aloca subalternamente em relação às outras pessoas, ao contrário do que costuma fazer Fabiano consigo mesmo na interação com os demais. “Sinhá Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido algumas inconveniências” –, a esposa representa o ponto de apoio, o questionamento e o porto seguro frente ao desassossego. A mão que metaforicamente sacode o marido é a mesma que o afaga. “Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se (…). Falou”.

Fabiano questiona-se ensimesmado, um bicho, um macaco, uma coisa da fazenda, um tatu escondido no mato, mas “um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem”. O desespero inconsciente de ter um eu e o de não querer ser ele próprio dilui-se em face de outras reflexões, dando lugar ao desespero de querer ser ele próprio. “Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia”.

Semelhanças e dessemelhanças no desassossego dos personagens masculinos de outras obras do Velho Graça podem ser reconhecidas quando Paulo Honório, de São Bernardo, admite-se agitado por “emoções indefiníveis” ao passo que Luís da Silva, de Angústia analisa que “todo desarranjo é interior”. Fabiano, por sua vez, percebe-se inquieto, mas não se vale da função referencial para expressar a angústia que o consome. Limita-se a realizar um movimento elíptico e nauseante de retomada de questões que o afirmam ora como homem ora como bicho, incapaz, no entanto, de debruçar-se sobre as próprias indagações, escravo de um pensamento circular que o aprisiona ao imediato do trabalho braçal e às questões concernentes à materialidade das ações: ter ou não uma propriedade, um novilho, uma rês, atender ao desejo de Sinhá Vitória de uma cama confortável como a de seu Tomás da bolandeira, sofrer ou recusar as injustiças do patrão, do soldado amarelo. E as fronteiras dos desejos irrealizados não só cerceiam os sonhos como os destroem, tornando-se a seca, não apenas uma questão isomórfica no que tange à relação de Fabiano com as pessoas, como também no que tange ao fato de os sonhos desfazerem-se rápido demais, inviabilizarem-se ainda no plano do pensamento. Isso tudo porque o vaqueiro sabia que “Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia” e, acima de tudo, como muitos personagens de natureza atordoada, repleta de conflitos, ele “Não podia arrumar o que tinha no interior”.

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