Sessenta anos sem graça
Publicado em 01 d fevereiro d 2013
D’O Trem Itabirano
por EDMÍLSON CAMINHA
Em 1953, morria Graciliano Ramos, sobre quem certa vez declarou Jorge Amado: “Ante a justeza, a correção da língua portuguesa por ele escrita, nós, os outros ficcionistas do Nordeste, somos uns bárbaros”. Faz, pois, 60 anos que partiu o Velho Graça, como o tratavam carinhosamente os colegas, testemunhas da curiosa trajetória literária de quem se pusera entre os poucos nomes, da sua geração, com a grandeza e a importância de Machado de Assis.
Tudo começou com os célebres relatórios que, como prefeito da alagoana Palmeira dos Índios, fizera ao governador do estado, em 1929 e 1930. Nas mãos do editor Augusto Frederico Schmidt, os textos sugeriram a pena de um bom escritor, talvez no futuro um grande romancista, por que não? O estilo era ágil e espontâneo, nada conforme com o jargão oficial: “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados”. E sobre a iluminação da cidade: “A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente a claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá”.
Schmidt não se enganara: em 1933, chega às livrarias Caetés, a primeira obra de Graciliano Ramos: para o impiedoso Agripino Grieco, “um admirável romance”; para Álvaro Lins, “um livro maciçamente ruim”. No ano seguinte surge São Bernardo, e aí o impacto é enorme: nada indicava que o romancista irregular da primeira hora fosse capaz de tamanha arrancada, ao conceber Paulo Honório, uma das mais vigorosas personagens da nossa ficção. A obra-prima do alagoano de Quebrangulo (e não “Quebrângulo”, como às vezes se ouve) só viria, porém, em 1936: Angústia, em que o autor desce tão fundo nos subterrâneos da alma humana que se torna mestre do romance psicológico na literatura do seu tempo.
Vidas Secas é de 1938. Planejados, inicialmente, como pequenos contos para publicação em periódicos, os capítulos, na sua independência, acabam por constituir uma unidade, na medida em que um arquipélago também o é. Depois viriam as reminiscências de Infância e de Memórias do Cárcere – esta, a mais importante literatura que se produziu sobre o violento Estado Novo de Getulio Vargas.
Em 1980, publicam-se as cartas que escrevera para a mulher Heloísa, em que discorre, por exemplo, sobre o seu processo de criação literária: “O São Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem”. Para ele, em certos momentos, ficção e realidade se confundem, como quando trata de uma de suas personagens: “Anteontem abrequei a Germana num canto de parede e sapequei-lhe um beliscão retorcido na polpa da bunda”. Ao falar de Angústia, comenta: “Marina está grávida, creio que já lhe disse. Agora vou ver se é possível matar Julião Tavares. Difícil. A morte desse homem vai demorar muito”.
A correspondência vale, também, pelo inesperado bom humor desse nordestino seco e difícil, humor a um tempo amargo e refinado, machadiano na essência: “Comprei sapatos, meias, gravatas e uma roupa de linho. Estou muito bonito, com chinelos novos. Os que você me deixou só davam para metade dos pés. Com sapatos novos, creio que escreverei melhor”. Mal saído da cadeia, vai o romancista ao Ministério da Educação, onde se encontra com o titular Gustavo Capanema: “Zelins acha excelente nossa desorganização, que faz com que um sujeito esteja na Colônia hoje e fale com ministros amanhã; eu acho ruim a mencionada desorganização, que pode mandar para a Colônia o sujeito que falou com o ministro”. Ateu empedernido, não é dos melhores o conceito que tem de Jesus: “Foi o pior dos revolucionários, muito mais prejudicial que o Juarez Távora. (…) Estou aqui pensando no que seria o mundo se o J. Cristo, em vez de se entregar àquela mania que todo judeu tem de consertar o que está certo, tivesse ficado em casa, fabricando bancos e mesas, como o marido da mãe dele”.
Homem digno e autêntico, coerente até nas contradições, é o que foi Graciliano Ramos, cidadão cuja leitura predileta era a Bíblia, que detestava vizinhos mas adorava crianças, confessava-se indiferente à música e à academia e esperava morrer aos 57 anos de idade. Viveu mais três, para legar ao Brasil e ao povo brasileiro, como disse Nelson Werneck Sodré, “um dos mais altos exemplos de honestidade literária que nos foi dado conhecer”.
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