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mar.13: Caetés, Capítulo XXIV

Publicado em 01 d março d 2013

Graciliano Ramos publicou o Capítulo XXIV de Caetés, em primeira mão, no número 9 da revista Novidade, em 6 de junho de 1931. O livro, publicado em 1933, comemora 80 anos em 2013.

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Seria uma felicidade para mim, decerto, a morte de Adrião. Desgraçadamente aquela criatura tinha sete fôlegos. Hoje, quase a morrer de olho duro, vela debaixo do travesseiro, a casa cheia, padre ao lado, os amigos escovando a roupa preta – e amanhã arrimado à bengala, perna aqui, perna acolá, manquejando.

Decididamente o dr. Liberato é um sujeito desastrado: deixa que se vão os doentes que fazem falta e adia o fim dos inúteis. Guiomar Mesquita, com dezoito anos, flor de graça e bondade, como diz Xavier Filho, depois de quatro meses ora arriba ora abaixo, lá se foi em março. E a mulher do sapateiro, a tísica, ainda vive. Enquanto, carregado de apreensões, eu tentava acrescentar uma página aos meus caetés, ouvia-lhe a tosse cavernosa.

Vendo Adrião estirado, a gente perguntava:

– Há perigo, doutor?

E o dr. Liberato falava no ventrículo, na aurícula, nas válvulas, e opinava:

– Se não sobrevierem complicações, julgo que  não há perigo.

Não sobrevinham complicações. A aurícula, o ventrículo, as válvulas, continuavam a funcionar – e Adrião, combalido, existia.

E tudo seria tão fácil se ele desaparecesse! Afinal não era ingratidão minha desejar-lhe o passamento, que não lhe devia favor. Conservava-me porque o meu trabalho lhe era proveitoso. Amizade, proteção, lorota. Hoje não há disso. Se eu não tivesse habilidade para sapecar a correspondência com desembaraço e encoivarar uma partida sem raspar o livro, punha-me na rua.

Eu dava mais do que recebia, na opinião do Mendonça. Em todo o caso nunca ousei descobrir a mim mesmo o fundo do meu coração. Não chegaria a pedir aos santos, se acreditasse nos santos, que abreviassem os padecimentos do Teixeira. Tergiversava. As minhas ideias flutuavam, como flutuam sempre.

À noite passava tempo sem fim sentado à banca, tentando macular a virgindade de uma tira para o jornal de padre Atanásio. Impotência. O relógio batia nove horas, dez horas. O pigarro do dr. Liberato era abominável. Na sala de jantar, Isidoro, Pascoal e d. Maria jogavam as cartas, tinham à vezes contendas medonhas.

Dançavam-me na cabeça imagens indecisas. Palavras desirmanadas, vazias, cantavam-me aos ouvidos. Eu procurava coordená-las, dar-lhes forma aceitável, extrair delas uma ideia. Nada.

Cães ladrando ao longe, galos nos quintais, gatos no telhado, serenatas na rua, o nordeste furioso a soprar, sacudindo as janelas.

“Jurado amigo…” Carta a um juiz de fato, mofina contra ao júri, que absolveu Manuel Tavares, assassino. Depois de muito esforço, consegui descrever o tribunal, o presidente magro e asmático, gente nos bancos, o advogado triste e com a barba crescida, o dr. Castro soletrando o libelo. Não ia, emperrava. Tanto melhor, que padre Atanásio, bem relacionado com o Barroca, não havia de querer publicar aquilo. E que me importava que Manuel Tavares saísse livre ou fosse condenado? Um criminoso solto. Não vinha o mundo abaixo por ficar mais um patife em liberdade.

Antes o soneto que abandonei por falta de rima. Torci, espremi – trabalho perdido. Eu sou lá homem para compor versos! Tudo falso, medido.

O que eu devia fazer era atirar-me aos caetés. Difícil. Em 1556 isto por aqui era uma peste. Bicho por toda a parte, mundéus traiçoeiros, a floresta povoada de juruparis e curupiras. Mais de cem folhas, quase ilegíveis de tanta emenda, inutilizadas.

Talvez não fosse mau aprender um pouco de história para concluir o romance. Mas não posso aprender história sem estudar. E viver com o dr. Liberato e Nazaré, curvados sobre livros, matutando, anotando, ganhando corcunda, é terrível. Não tenho paciência.

Enfim ler como Nazaré lê, tudo e sempre, é um vício como qualquer outro. Que necessidade tem ele, simples tabelião em Palmeira dos Índios, de ser tão instruído? Quem dizia bem era Adrião: “Essas filosofias não servem para nada e prejudicam o trabalho.”

Adrião. Lá vinha novamente o Adrião. Que acaso infeliz amarrara àquele estafermo a mulher que devia ser minha? Cheguei tarde. Quando a conheci, já ela era do outro.

E pensar que há indivíduos que têm tudo quanto necessitam! Para mim, dificuldades, complicações.

Tinha medo do que diziam de Luisa, encolhia-me aterrorizado, evitava os conhecidos, não ousava encarar Nazaré. No escritório, certos modos impacientes de Adrião davam-me tremuras. Santo Deus! Que teria observado aquele animal? que iria fazer quando chegasse a casa? Despropositar, martirizar a pobrezinha com uma cena de ciúme. Isto me revoltava. Que direito tinha ele de se mostrar ciumento? Um sujeito enfermiço, cor de manteiga, com as entranhas escangalhadas…

E eu a esconder-me, a fugir de Isidoro, que me aperreava:

– Se ela fosse viúva… Isto de saias eu conheço bem. Se fosse viúva…

– Mas não é, homem, respondi-lhe por fim, irritado. Deixe-me em paz. Eu não posso casar com uma mulher casada.

E a d. Maria José, que um dia achou inocentemente que eu era feliz, retorqui de um fôlego, com dureza:

– Feliz por quê, d. Maria? Que é que a senhora quer dizer?

Ela espantou-se. Queria somente dizer o que tinha dito, mas se eu sentia prazer em ser infeliz, estava acabado, pedia desculpa. O italiano riu, Isidoro encolheu os ombros, o dr. Liberato fez uma careta e decidiu:

– Você, meu caro, não está regulando. Vou examiná-lo amanhã.

IN: RAMOS, Graciliano. Caetés. Rio de Janeiro: Record, 2012, p.189-192.

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