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mai.13: Um homem forte

Publicado em 01 d maio d 2013

Tem sessenta e oito anos, a pele negra, os cabelos encarapinhados. Nasceu em Pernambuco, chama-se Domingos Jorge da Costa e, sem nunca ter ouvido falar no conde de Gobineau, é inimigo natural dele. Vende peixe nas ruas e faz comícios contra os alemães e o racismo, num botequim em Sampaio, defronte do Ginásio 28 de Setembro. Distingue-se assim de muitos arianos nacionais e intransigentes que, desdenhando raças inferiores, buscam disfarçar a escuridão da epiderme.

Com sessenta e oito anos, Domingos Jorge da Costa possui boa vista. E, olhando a mão única, dura e calejada no trabalho, reconhece honestamente que ela é negra. Reconhece e confessa.

A mão esquerda perdeu-se quando essa personagem, com onze anos, ia tomar um bonde no Recife e caiu do estribo. A profissão de mendigo seria hoje perfeitamente aceitável. O homem não se conformou com isso. E, independente, fala aos gritos, abafando as vozes dos freqüentadores do botequim.

– Meu filho médico…

Ahn? Julgamos ter ouvido mal. As criaturas que vendem peixe nas ruas calçam tamancos e vestem roupa safada em geral não têm filhos médicos, especialmente quando são pretas. De fato, Domingos Jorge da Costa, vendedor ambulante de peixe em Sampaio, não tem um filho médico: tem três filhos médicos. Como conseguiu isso? Ele explica, dando risadas e batendo na mesa com a mão única, interrompendo a narração para atacar os alemães e o racismo.

Ao ver-se livre da mão esquerda, no desastre do bonde, mudou-se para Caruaru e estabeleceu um frege-moscas diante da estação.

O negócio prosperou, em pouco tempo surgiu um hotelzinho, onde os matutos solteiros iam tomar o trem e dormiam à razão de mil e quinhentos réis por cabeça. Os casais pagavam cinco mil-réis. Essa diferença contra os casados foi motivo principal da fortuna de Domingos Jorge da Costa, que, aprumado, importante, escolheu uma boa dona de casa, Luísa, e ligou-se a ela no religioso e no civil. Branca? Não senhor, morena, cor de taioca, mas sólida, para todo o serviço, econômica e direita. Cumpriu os seus deveres e faleceu tranqüilamente, deixando três meninos e uma menina, que foram estudar no Recife e adquiriram regular sabedoria.

Alguns anos depois a hospedagem dos passageiros defronte da estação de Caruaru tinha rendido quinhentos contos de réis em mercadorias e propriedade. Esses bens, convertidos em notas do tesouro, encolheram-se, reduziram-se a pouco mais de trezentos contos, importância com que Domingos Jorge da Costa aqui desembarcou em 1918.

Logo se encaminhou ao Pedro II, inquiriu se os estudos lá eram como os de Pernambuco e se os papéis dos filhos estavam em regra. Estavam. E os rapazes se matricularam na Praia Vermelha, a moça no Instituto de Educação. Diplomaram-se e entraram nos caminhos convenientes.

D. Maria José da Costa, professora, casou e em 1936 morreu. O dr. João Batista da Costa é funcionário no Ministério da Saúde. O dr. Luís de França Costa empregou-se na Light. O dr. Mário de França Costa, o mais velho, separou-se do pai: mora em Nilópolis, onde tem farmácia.

Todos os outros membros dessa admirável família, acrescida com a mulher do dr. João Batista e o viúvo de D. Maria, vivem juntos na rua Frei Caneca, nº 284, primeiro andar. Estão aí em perfeita harmonia, comodamente, procurando levar o grande patriarca maneta a, depois de tanta fadiga, largar o cesto de peixe e dar repouso ao velho corpo.

Naturalmente Domingos Jorge da Costa não precisa continuar a estafar-se para ganhar uns mil-réis por dia. Mas Domingos Jorge da Costa é incapaz de ficar ocioso. Realizou uma enorme tarefa. E agora, que tudo está feito e nada mais deseja, distrai-se com tarefas pequenas. Abandonados os tamancos, a roupa esfiapada, o cesto, mergulha num banho quente, veste o pijama fino e vai estirar-se no divã, sorrir bonachão aos filhos, à nora, ao genro. Não poderia conservar-se muito tempo assim. Os móveis são macios. E Domingos Jorge da Costa habituou-se a uma vida áspera. Se o obrigassem a viver deitado em colchão fofo, morreria de tédio. Passa aí algumas horas, dorme. No dia seguinte deixa o sossego, veste a roupa estragada, calça os tamancos, pega o cesto e vai distribuir peixe aos fregueses. Será um homem útil, enquanto andar na terra.

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Escrito em 27 de janeiro de 1942 e publicado no Cruzeiro em 11 de setembro de 1943

IN: RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 336.

 

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