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jun.13: Samuel Smiles

Publicado em 01 d junho d 2013

Eu tinha visto esse nome várias vezes na seleta, mas, como não sabia pronunciá-lo, acostumei-me a tossir no fim das lições em que ele aparecia subscrevendo medonhas trapalhadas. Deviam ser regras importantes, imaginei, regras úteis se me entrassem na cabeça; mas naquele tempo não adivinhei o que Samuel Smiles exigia de mim. Aborrecendo-o, respeitei-o demais, por não perceber o que ele dizia e até por ignorar como se chamava.

Esse caso rendeu-me decepções e algum proveito. Cantarolei bocejando os nebulosos conselhos. A professora me corrigia. Quando, porém, eu engrolava, tossindo, o nome do autor, faltava a emenda — e em conseqüência presumi que, pelo menos nesse ponto, a rudeza da mulher coincidia com a minha. Certifiquei-me disso deixando de tossir e pronunciando Smiles de várias maneiras, sem que D. Agnelina me repreendesse.

Afinal percebi nela um procedimento esquisito: antes que eu largasse barbaramente a extraordinária palavra, fechava o livro e desconversava. Nasceu daí uma espécie de cumplicidade, que a tornou razoável durante meses. Em aritmética eu era um selvagem, pouco mais ou menos um selvagem, mas fui tolerado, e creio que devo isto a Samuel Smiles.

Essa professora atrasada possuía raro talento para narrar histórias de Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até meia-noite com lendas e romances, que estirava e coloria admiravelmente. Nada me ensinou, mas transmitiu-me afeição às mentiras impressas.

Talvez a prenda notável de D. Agnelina tenha induzido meu pai a afastar-me do mau caminho, confiar-me ao Professor Rijo, aposentado, rábula distinto. Éramos apenas dois alunos, eu e meu primo José, um pouco mais bruto que eu. Na ausência do mestre, bocejávamos, olhávamos as andorinhas no céu, as lagartixas brancas na parede e os lombos temerosos dos livros nas estantes. O homem aparecia de salto, tomava as nossas lições rapidamente, encoivarava algumas perguntas e dava logo as respostas, sem esperar que acertássemos ou errássemos.

Aí me caiu a leitura de uma das maçadas de Samuel Smiles. Tossi e resmunguei a segunda palavra enchendo a boca de língua. O professor interrompeu-me, separando as sílabas com bastante clareza: Samuel Smailes. Arregalei o olho, o sujeito repetiu: Smailes. Balbuciei o nome encrencado sem nenhuma segurança. Imaginei um engano: tinha por erro o que divergia da minha maneira habitual de falar. Realmente pronunciara Smiles de vários modos, mas supunha que alguns deles estivesse direito. Julguei o professor uma besta — e meu primo José concordou.

Finda, porém, essa manifestação de rebeldia, chegaram-me dúvidas, grande espanto em seguida, por fim mistura vaga de resistência e admiração àquele homem que alterava as letras. A firmeza séria me deu a suspeita de que me achava na presença de uma autoridade. E como não me seria possível discernir razões profundas, contentei-me com as aparências — e a suspeita se transformou em convicção.

Eu afirmava com facilidade. Lera um romance e conseguira entendê-lo. Entendera pedaços, que o meu vocabulário era insignificante. Pois julguei-o, seguro, o maior romance do mundo. Depois a certeza se abalou, assaltaram-me vacilações dolorosas.

O professor não podia comparar-se aos viventes comuns. Grave, o dedo na página, articulara: Smailes. Nas lições seguintes percebi que ele não se contradizia. Comecei então a admirá-lo. Procurei outras palavras em que o i se pronunciasse daquele jeito. Inutilmente. Apesar de tudo Smiles era Smailes, e ninguém me tirava daí.

Ora, um dia, na loja, achava-me remoendo um jornal em voz alta, só para me familiarizar com a literatura, sem notar que me escutavam. De repente o meu conhecido avultou no papel. Temperei a goela e exclamei: Samuel Smailes. Um dos caixeiros censurou-me a ignorância e corrigiu: Samuel Símiles. Outro caixeiro hesitou entre Símiles e Simíles. Repeti que era Smailes, e isto produziu hilaridade.

O moço que dizia Simíles costumava zombar de mim com barulho. Qualquer dito meu o excitava: mordia os beiços, avermelhava-se como um peru, lacrimejava, enfim não se continha, caía num riso convulso, rolava sobre o balcão, meio sufocado. Certamente eu era ridículo: alguma tolice provocara a manifestação ruidosa. Que tolice? Não a enxergava. Inteligência curta.

O empregado que dizia Símiles, mulato vaidoso e seco, nunca me olhava de frente. Quando eu lhe falava, virava-se para outro lado e rosnava ofensas em linguagem escolhida.

Entre os indivíduos que freqüentavam a loja, havia um particularmente desagradável: Fernando. Esse monstro sentia prazer em martirizar-me. Grosseiro demais, insultava-me sem precisão.

Eu tinha o juízo fraco e em vão tentava emendar-me: provocava risos, muxoxos, palavrões. Encolhia-me, esfriava, a vista escurecia. Calava-me na presença desses entes ruins, escapulia-me como um rato, mas não conseguia livrar-me. Sentava-me num canto, em silêncio, folheando o dicionário para interpretar o romance de capa e espada, e eles se chegavam, pouco a pouco tomavam conta de mim, quase sempre referindo-se a vagos disparates meus.

Algumas vezes busquei desembaraçar-me reproduzindo molemente, com as orelhas pegando fogo, os insultos de Fernando. Sempre me dei mal: as risadas cresciam, os muxoxos engrossavam, Fernando se tornava mais feroz. Inútil reagir.

Naquele dia, porém, quando o mulato me replicou duramente, jurei que ele estava errado. O tipo branco foi-se avermelhando, acabou explodindo na risada ordinária. Asseverei de novo que Samuel era Smailes, perfeitamente Smailes, mas falei bambo, muito infeliz e com vontade de chorar. O rapaz continuava a rir, o mulato resmungava e franzia as ventas, Fernando me injuriava.

Diante disso, invoquei a autoridade do professor, que devia conhecer bem Samuel Smiles. O professor dizia Smailes. Mentira, gritou Fernando — injustiça, pois eu não sabia mentir.

Cobriram-me de motejos e resolveram adotar a opinião do mulato: Samuel Símiles. Arriei, vencido.

Mas sosseguei. Aquela vaia não me alcançava: feria uma pessoa sabida. Achei apoio, indaguei se as bobagens que a trinca maliciosa me atribuía eram bobagens. Cresci um pouco, esteado no homem que só me ensinou o nome de Samuel Smiles, e ensinou muito. Sentado num caixão, o dicionário nas pernas, ri-me dos três. Idiotas.

Eu era meio parvo, todos se impacientavam com a minha falta de espírito. Rude, sem dúvida. Vocabulário mesquinho, entendimento escasso.

Mas Samuel Smiles impunha-se facilmente. Era Smailes porque a voz do professor me chegava clara, porque a unha amarela do professor riscava a página com energia. Samuel Smailes, pois não.

E as pilhérias dos sujeitos resvalaram por mim sem fazer mossa. O coração aliviou. Isolei-me, o rosto metido no dicionário. Imbecis. Tinham decidido por maioria que Samuel era Símiles.

Pus-me a ler baixo, inteiramente desanuviado. Imbecis. Samuel Smailes, com certeza. E enrosquei-me, embrenhei-me no dicionário, eximi-me da influência dos três malvados.

Samuel Smiles, escritor cacete, prestou-me serviço imenso.

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IN: RAMOS, Graciliano. Infância. 39ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 211.

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Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)