Graciliano Ramos, o político: ordem na literatura e na administração
Publicado em 01 d julho d 2013
Do jornal O Globo
Caderno Prosa
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Flip terá na biografia e nos livros de seu homenageado um guia para debater o atual clima de insatisfação entre os brasileiros: como prefeito de Palmeira dos Índios, militante do Partido Comunista Brasileiro e autor de obras de cunho social, alagoano foi um exemplo de conduta ética
Há pouco mais de 80 anos, não foram necessários protestos para que houvesse mudanças num pequeno município do interior de Alagoas. Entre 1928 e 1930, um prefeito de Palmeira dos Índios resolveu combater a corrupção, acabar com o clientelismo que favorecia os coronéis e dar uma atenção especial para a periferia, antes ignorada. Ele chegou a demitir o secretário de Finanças, por deslizes. Proibiu pequenas infrações, tão comuns já naquele tempo, inclusive as cometidas por parentes. Fez, portanto, o que se espera de qualquer governante, apesar de ele próprio não ser um brasileiro qualquer.
Naquela época, o prefeito de Palmeira dos Índios era Graciliano Ramos, o alagoano que se tornaria, nos anos seguintes, um dos mais respeitados autores da literatura brasileira, mas que deixou uma breve marca de correção e austeridade na política — um exemplo para os dias atuais em que as ações de governantes têm sido questionadas pelo povo. Graciliano será o autor homenageado na 11a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e terá mesas dedicadas não apenas à sua obra literária, mas também a seu legado e pensamento político. O anúncio da homenagem foi feito no ano passado, mas o momento não poderia ser mais apropriado.
— Acho que houve uma intuição da Flip na escolha do Graciliano para este ano — diz o escritor amazonense Milton Hatoum, que será responsável pela conferência de abertura da Festa, na quarta-feira. — Pretendo abordar muito o Graciliano político. Na vida política dele, tanto como prefeito de Palmeira dos Índios e depois como secretário de Educação de Alagoas, já havia uma preparação para o que seria sua ficção. Nunca houve uma mensagem ideológica em seus livros, mas ele tocou em questões profundas da nossa sociedade. Hoje, as pessoas estão indo para as ruas para tentar resolvê-las. A educação, por exemplo, era central na obra dele. Havia, por um lado, os Fabianos, e por outro o discurso pomposo do poder oligárquico e patriarcal.
Romances sociais e psicológicos
Graciliano foi prefeito de Palmeira dos Índios entre janeiro de 1928 e abril de 1930 e imortalizou a experiência em relatórios de prestação de contas enviados ao governo de Alagoas, nos quais descrevia suas atividades e comentava os problemas da cidade. Com ironia, ele escreveu, no relatório sobre o ano de 1929, acerca dos mais abastados do município: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão. Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros”.
Foram os relatórios que chamaram a atenção do editor Augusto Frederico Schmidt para a qualidade do texto de Graciliano e levaram à publicação, em 1933, de seu primeiro romance, “Caetés”. Na época, o autor já havia deixado a prefeitura de Palmeira.
— Uma característica de Graciliano que transparece nos relatórios, apesar do humor e da ironia, é exatamente o desejo de ter as coisas em ordem, seja em termos de gramática, administração pública ou organização social — diz o americano Randal Johnson, professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia, que virá ao Brasil participar da Flip. — É importante notar, porém, que a sua concepção de ordem tem a ver com transparência e eficiência, e não com a regimentação autoritária, como se vê na mesma época em alguém como (o escritor e acadêmico carioca) Otávio de Faria.
O interesse de Johnson na cultura brasileira teve início em 1967, sob motivação de João Gilberto, Tom Jobim e outros célebres bossanovistas. Da música, ele passou para o cinema e para a literatura. E teve em “Vidas secas” sua estreia como leitor de romances brasileiros.
— O gênio de Graciliano foi ter conseguido transcender as dicotomias do campo literário na época, escrevendo romances que são sociais e psicológicos ao mesmo tempo, mostrando o impacto das contradições sociais sobre o indivíduo, ou como essas contradições são internalizadas em figuras como Paulo Honório (protagonista de “São Bernardo”) ou Luís da Silva (de “Angústia”) — explica Johnson.
Depois da breve experiência como prefeito, Graciliano se mudou para Maceió, onde assumiu primeiramente a direção da Imprensa Oficial de Alagoas e, em 1933, o cargo de diretor da Instituição Pública de Alagoas, órgão que equivalia à Secretaria de Educação. Biógrafo de Graciliano, e também convidado para debater sua obra na Flip, o carioca Dênis de Moraes explica que, nos quase três anos em que ficou no governo alagoano, o autor deu uma contribuição importante para alterar a gestão da instituição.
— Ele foi um secretário revolucionário, redirecionando os investimentos para os bairros pobres e municípios carentes — conta Dênis de Moraes, autor da biografia “O velho Graça” (Boitempo Editorial). — Assim que foi empossado para cuidar da Educação de Alagoas, ele quis ir à periferia. Escolheu, então, o bairro mais pobre de Maceió e encontrou uma escola completamente às moscas porque os alunos eram muito pobres, não tinham dinheiro para comprar uniformes e sapatos, e havia um regimento que impedia que a escola funcionasse com alunos sem uniforme. Aí ele foi a uma loja de tecidos, a uma sapataria e costureiras. Disse, em todos os casos, que não tinha dinheiro para pagar naquele momento pelos serviços, mas que precisava de ajuda e que pagaria assim que pudesse. Depois ele voltou pessoalmente à escola com os embrulhos para dar para os alunos. E, mais adiante, mandou pagar a loja de tecidos, as costureiras e a sapataria.
Logo depois de deixar o governo de Alagoas e justamente por algumas das posturas que mantinha em sua vida pública e pelos temas de seus livros, Graciliano foi preso pelo governo de Getúlio Vargas em março de 1936, acusado de ser comunista. A prisão de Graciliano acompanhou uma caça perpetuada por Vargas contra os integrantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, meses antes, em novembro de 1935, deflagraram a Intentona Comunista, uma tentativa de golpe contra a presidência.
Graciliano foi, assim, levado para o antigo presídio de Ilha Grande, no Estado do Rio, onde ficou até janeiro de 1937. O episódio ficou conhecido por seu relato em “Memórias do cárcere”, obra que seria lançada apenas em 1953, poucos meses após sua morte.
— Temos que parar de falar de Ilha Grande como um presídio e dar àquilo o termo correto: era um campo de concentração. Houve prisões em massa de opositores da Ditadura Vargas, que eram colocados lado a lado de presos comuns, de ladrões e assassinos — conta Dênis. — Em “Memórias do cárcere”, Graciliano mostrou como todos viviam lá em condições sub-humanas. Era uma situação ultrajante tanto para os presos políticos quanto para os presos comuns.
Apesar de ser preso sob a acusação de comunismo, o escritor só se filiou ao PCB anos depois, em agosto de 1945, a convite de Luís Carlos Prestes.
— Graciliano foi à União Soviética em 1952 como membro de uma delegação oficial do PCB. Embora na juventude, aos 20 e poucos anos, tivesse contato com “O capital”, de Marx, e tivesse acompanhado pelos jornais o desenrolar da Revolução Russa de 1917, a documentação sobre seu pensamento político na época é escassa. Portanto, acho difícil dizer que a sua crença na esquerda era a mesma nas duas ocasiões. Nem poderia ser. Temos que ter um pouco de cuidado com projeções retrospectivas. O fato de que alguém pensava de determinada maneira em 1952 não significa que já pensava da mesma forma em 1922 ou 1932 — diz Randal Jonhson.
Um dos temas de debate na Flip certamente será o quanto o comunismo afetou a postura pública e a obra de Graciliano. Seus livros nunca foram panfletários, muito menos seguiram a cartilha do realismo socialista do soviético Andrei Jdanov, para quem as artes deveriam refletir a política diretamente. E Graciliano acabou sendo criticado por membros do PCB por essa falta de alinhamento com a estética socialista.
Até mesmo ao analisar os ganhos do comunismo, ele adotava uma postura crítica. Em seu livro de crônicas “Viagem”, publicado em 1954, um ano depois de sua morte, há queixas sobre o excesso de policiais nas ruas de Moscou e quanto ao culto que havia entre os soviéticos ao Mausoléu de Lênin.
— Ele foi bastante cobrado pelo Partido, mas sua dignidade e compromisso com a literatura foram mais fortes do que essas cobranças — diz Milton Hatoum. — Nunca houve uma mensagem ideológica em seus livros. Ele detestava o realismo socialista.
Autonomia e sensibilidade crítica
Algumas dessas discordâncias estéticas de Graciliano com o socialismo também apareceram em sua viagem à União Soviética. Numa visita à Geórgia, então uma república soviética, ele estranhou não haver, na sede da União dos Escritores Georgianos , uma foto de Dostoiévski, cuja obra era considerada burguesa pelo governo de Stálin. Perguntou a razão da ausência para um responsável pelo local. E obteve como resposta que Dostoiévski não era georgiano.
Graciliano, então, percebeu que havia lá na parede uma foto de Tolstói, escritor russo que era tão “georgiano” quanto Dostoiévski, mas que nunca teve sua literatura condenada pelos dirigentes comunistas.
— Graciliano se filiou ao PCB por ter uma firme convicção no socialismo, por ver a ideologia como um caminho para a emancipação da Humanidade. O Partido, para ele, era um instrumento de luta política para a construção de uma nova sociedade. Foi uma militância extremamente importante dentro de sua escala de valores — avalia Dênis de Moraes. — Mas, ao mesmo tempo, ele sabia diferenciar o Partido como instituição do Partido apropriado por seus dirigentes. Com notável habilidade, ele sempre repeliu quem tentasse impingir o realismo socialista em sua obra. Ele tinha autonomia e sensibilidade crítica que não o fizeram se subordinar aos imperativos do Partido. Por isso, sua crença filosófica no socialismo não contaminou sua obra literária.
Outro exemplo da firmeza com que Graciliano defendia suas convicções — políticas e estéticas — apareceu no campo pessoal. O autor, nascido numa família de classe média no município de Quebrangulo, em 1892, foi visto por muitos como um homem sisudo e extremamente sério. Há relatos de quem o considerava arrogante e antipático justamente por não aceitar desvios de qualquer natureza, tanto públicos quanto privados.
Quando prefeito de Palmeira dos Índios, ele demitiu seu secretário de Finanças ao desconfiar de sua lisura no cuidado das contas do município. Só que o tal secretário era irmão do vice-prefeito, que prontamente foi até Graciliano reclamar da situação e dizer que, se o irmão saísse, ele sairia também. O escritor não se abalou. Peremptório, continuou a governar sem vice-prefeito.
— Correndo o risco de exagerar, digo que Graciliano era um tipo pouco brasileiro. O discurso comum nacional é o do excesso, do acúmulo, da intensidade, da carnavalização. Já o Graciliano ia na contramão disso. Seus personagens foram marcados por uma dureza moral, que vem de um ethos que desconfia das próprias emoções e excessos — analisa o escritor pernambucano José Luiz Passos, que estará em três mesas da Flip, duas como mediador de discussões sobre a obra de Graciliano. — Com a decisão de escolher Graciliano como autor homenageado da Flip em 2013, a organização deu uma sorte incrível por a festa ocorrer justamente neste momento de protestos pelo país. Eu acho que, por isso, a Flip será um campo importante de reflexão sobre tudo o que vem acontecendo no Brasil. E será uma reflexão guiada pelo pensamento do Graciliano.
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