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ago.13: Caetés, capítulo XXXI

Publicado em 01 d agosto d 2013

Uma tarde, girando por estas ruas, parei na beira do açude, lembrei-me da estrela vermelha e da noite em que Luísa me repeliu. Afastei-me lento, subi pelos Italianos. O casarão estava fechado agora, e as grades do jardim eram um muro verde de trepadeiras. O pequenino lago, os tinhorões, a garça de bronze, tudo invisível. Como aquilo ia longe!

Entrei a vagar pela cidade, maquinalmente, levado por uma onda de recordações. À boca da noite achava-me na calçada da igreja.

Da paisagem admirável apenas se divisavam massas confusas de serras cobertas de sombras.

A estrela vermelha brilhava à esquerda. Pareceu-me pequena, como as outras, uma estrela comum. Comum, como as outras. E estive um dia muito tempo a contemplá-la com respeito supersticioso, contando-lhe cá de baixo os segredos do meu coração. E lamentei não ser selvagem para colocá-la entre os meus deuses e adorá-la.

O vento zumbia no fio telegráfico. À porta do hospital de S. Vicente de Paulo gente discutia. A escuridão chegou.

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente… Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar… O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacurau, da Semana para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado… Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem… A timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora, torcendo as mãos com angústia… Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa… Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco…

A cidade estendia-se, lá embaixo, sob uma névoa luminosa. O vento continuava a zumbir no arame. Fazia frio. Violões passaram gemendo.

Um caeté, sem dúvida. O Pinheiro é um santo, e eu às vezes me rio dele, dou razão a Nazaré, que é canalha. Guardo um ódio feroz ao Neves, um ódio irracional, e dissimulo, falo com ele: a falsidade do índio. E um dia me vingarei, se puder. Passo horas escutando as histórias de Nicolau Varejão, chego a convencer-me de que são verdades, gosto de ouvi-las. Agradam-me os desregramentos da imaginação. Um caeté.

Para os lados do Xucuru, meia dúzia de luzes indecisas, espalhadas. Aquilo há pouco tempo era dos índios. Outras luzes na Lagoa, que foi uma taba. No Tanque, montes negros como piche. Ali encontraram, em escavações, vasos de barro e pedras talhadas à feição de meia-lua. Negra também, a Cafurna, onde se arrastam, miseráveis, os remanescentes da tribo que lá existiu.

Que semelhanças não haverá entre mim e eles! Por que procurei os brutos de 1556 para personagens da novela que nunca pude acabar? Por que fui provocar o dr. Castro sem motivo e fiz de um taco ivirapema para rachar-lhe a cabeça?

Um caeté. Com que facilidade esqueci a promessa feita ao Mendonça! E este hábito de fumar imoderadamente, este desejo súbito de embriagar-me quando experimento qualquer abalo, alegria, ou tristeza!

Se Pedro Antônio, Balbino, pobres-diabos que por aí vivem, soubessem exprimir-se, quantos pontos de contato!

Diferenças também, é claro. Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.

Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram!

Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo — uma estrela no céu, algumas mulheres na terra…

IN: RAMOS, Graciliano. Caetés [edição especial 80 anos]. edição única. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 201.

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Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas.

Memórias do Cárcere, cap. 5