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Graciliano no metrô de Moscou

Publicado em 01 d setembro d 2013

Do jornal A Tarde – Bahia, caderno Dois Mais
Por HÉLIO PÓLVORA
(republicação autorizada pelo autor)

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De férias no Rio de Janeiro, e em andanças nas ruas do Centro, alguém anotou no caderninho da memória: “Esta cidade mais parece uma chaminé”. O chão estava coalhado de baganas – indicio de que o percentual de fumantes cresce ali na razão direta da insegurança elevada a pânico.

As pontas de cigarro – muleta em que se apoiam os ansiosos e agoniados – constituíam parte considerável do lixo que os garis varrem inutilmente, como quem carrega água em cesto. Mas não é só a bagana: joga-se na rua tudo o que é descartável, a começar por invólucros. O programa Lixo Zero, com multas pesadas, veio corrigir o pendor à sujeira do bem público.

Graciliano Ramos atirou um cigarro aceso no impecável chão espelhante de uma estação de metrô de Moscou. Foi em 1952, quando visitou a Tchecoslováquia e URSS, a convite oficial. A partir de Praga, Arnaldo Estrêla e Sinval Palmeira juntaram-se à comitiva. Os comunistas queriam um livro de propaganda do regime. Chama-se Viagem e nele o escritor registra secamente, sem fanfarras, o que viu e ouviu.

Assim que acendeu o cigarro, um guarda esbravejou, primeiro com palavras, depois em furiosa gesticulação. Proibido fumar, traduziu o guia. Graciliano tratou logo de livrar-se do cigarro segundo o manifesto do negligente comodismo burguês, mesmo porque não havia cinzeiros à vista. Escândalo. “Tive de apanhá-lo, cheio de vergonha”, escreveria depois.

Sujar o meio ambiente com os restos do que se consome é tentação universal. Contra esta, o recurso é a deportação para a Sibéria ou a multa violenta que dói no bolso. Ainda bem que estamos na democracia, ou algo parecido, e que Stalin, o tzar moderno de todas as Rússias, dorme profundamente.

Graciliano, em outra imprudência ditada por nossa liberdade anárquica, viu Stalin de perto, “a poucos metros”. No Kremlin, ignorou uma cancela metálica, fim de linha estabelecido para os visitantes, e avançou justamente quando o líder subia a escada que leva ao túmulo de Lenin. Assestou o binóculo. Talvez nos Estados Unidos ou Inglaterra de hoje, acuados pelo terrorismo, esse gesto fosse seguido de intensa fuzilaria.

Apesar do susto, o escritor gravou a impressão do momento: Stalin estava “gordo e curvo”. Talvez quanto ao dorso, porque forçado a inclinar-se no esforço da subida.

Viagem é mais um livro de anotações do que memória circunstanciada, histórica ou geográfica. Não tem a pretensão de explicar o que então se entendia por “alma russa”, graças aos grandes ficcionistas do século XIX. Também foge aos clichês de louvação ideológica. É o relato impressionista de um escritor empenhado em dizer o que lhe tocou ou roçou a sensibilidade, no contato com pessoas e instituições estrangeiras.

O escritor alagoano se sente “um homem dos trópicos” que se arrisca a “andar entre esquimós”.As reações são pessoais, não passaram pelo crivo de qualquer comitê de partido. Está enfermo, com os “pulmões avariados” (faleceria um ano depois, a 20 de março de 1953). Sujeitou-se ao avião, “essa encrenca voadora”. Perdido, enregelado, procura o hotel Savoy, tem a sorte de encontrar logo alguém que fala francês.

Há lances patéticos. Graciliano deseja encontrar mujiques. Ou foram urbanizados ou estavam em fazendas coletivas. Procura personagens de Tolstói, de Dostoiévski em meio à névoa. Eles talvez lhe pareçam mais reais e significativos do que os arautos da nova ordem.

No entanto, não há cena mais patética do que aquela do metrô, quando ele apanha o cigarro que era uma nódoa no chão lustroso. Um vexame. Ela me remete a um capitulo de Infância, intitulado “D. Maria”. É a professora, do tempo em que higiene “era um luxo”. Pergunta se ele lavou as orelhas. Claro, sempre que lavava o rosto… Vem o conselho para que cuidasse bem delas – e isso o envergonha, o constrange. Desse dia em diante, de tanto esfregar as orelhas o menino as escoriou. D. Maria pediu que as deixasse em paz. Inutilmente, ele havia adquirido um hábito, como, mais tarde, o de lavar as mãos sempre que pegava em dinheiro.

Lixo Zero. Em Salvador essa cruzada eliminaria a imundície nas ruas, mas como banir o fedor de urina e as fezes do Carnaval da Barra? Lixo Zero, decerto. Nas consciências, na conduta, na vida pública, na música, no futebol e também nas letras.

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“Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia montar em burro bravo!”

Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)