out.13: A Terra dos Meninos Pelados, capítulos XIV e XV
Publicado em 01 d outubro d 2013
Capítulo Quatorze
– Quer ouvir o meu projeto? segredou o menino sardento.
– Ah! sim. Ia-me esquecendo. Acabe depressa.
– Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Está cheia de manchas, não está?
– Para dizer a verdade, está.
– É feia demais assim?
– Não é muito bonita não.
– Também acho. Nem feia nem bonita.
– Vá lá. Nem feia nem bonita. É uma cara.
– É. Uma cara assim assim. Tenho visto nas poças d’água. O meu projeto é este: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Não ficava bom?
– Para quê?
– Ficava mais certo, ficava tudo igual.
Raimundo parou sob um disco de vitrola, recordou os garotos que mangavam dele.
Capítulo Quinze
A cigarra lá de cima interrompeu a cantiga, estirou a cabecinha. Era uma cigarra gorda e tinha um olho preto, outro azul.
– Qual é a sua opinião? Perguntou o sardento.
Raimundo hesitou um minuto:
– Não sei não. Eles bolem com você por causa de sua cara pintada?
– Não bolem. São muito boas pessoas. Mas se tivessem manchas no rosto, seriam melhores.
A aranha vermelha deu um balanço no fio e chegou ao disco da vitrola:
– Que história é aquela?
– Palavreado à-toa, explicou a dona da casa.
– À-toa nada! bradou o sardento. Cigarra e aranha não têm voto. Cada macaco no seu galho. Isto é assunto que interessa exclusivamente aos meninos.
– Eu aqui represento a indústria de tecidos, replicou a aranha arregalando o olho preto e cerrando o azul.
– E eu sou artista, acrescentou a cigarra. Palavreado à-toa.
Raimundo esfregou as mãos, constrangido, olhou os discos e as teias coloridas que se agitavam.
– Parece que elas têm direito de opinar. São importantes, são umas bichonas.
– Direito de dizer besteira! Resmungou o sardento.
– Não senhor. A cigarra tem razão. Palavreado à-toa.
– Então você acha o meu projeto ruim?
– Para falar com franqueza, eu acho. Não presta não. Como é que você vai pintar esses meninos todos?
– Ficava mais certo.
– Ficava nada! Eles não deixam.
– Era bom que fosse tudo igual.
– Não senhor, que a gente não é rapadura. Eles não gostam de você? Gostam. Não gostam do anão, de Fringo? Está aí. Em Cambará não é assim: aborrecem-me por causa da minha cabeça pelada e dos meus olhos. Tinha graça que o anão quisesse reduzir os outros ao tamanho dele. Com havia de ser?
– Eu sei lá! rosnou o sardento amuado. O caso de anão é diferente. Parece que ninguém me entende. Vamos procurar os outros?
IN: RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. 37ª.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 44-49
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