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dez.13: Minsk (início)

Publicado em 01 d dezembro d 2013

Quando tio Severino voltou da fazenda, trouxe para Luciana um periquito. Não era um cara-suja ordinário, de uma cor só, pequenino e mudo. Era um periquito grande, com manchas amarelas, andava torto, inchado, e fazia: – “Eh! Eh!”

Luciana recebeu-o, abriu muito os olhos espantados, estranhou que aquela maravilha viesse dos dedos curtos e nodosos de tio Severino, deu um grito selvagem, mistura e admiração e triunfo.

Esqueceu os agradecimentos, meteu-se no corredor, atravessou a sala de jantar, chegou à cozinha, expôs à cozinheira e a Maria Júlia as penas verdes e amarelas que enfeitavam uma vida trêmula. A cozinheira não lhe prestou atenção, Maria Júlia franziu os beiços pálidos num sorriso desenxabido. Luciana desorientou-se, bateu o pé, mas receou estragar o contentamento, desdenhou incompreensões, afastou-se com a ideia de batizar o animalzinho. Acomodou-o no fura-bolo e entrou a passear pela casa, contemplando-o, ciciando beijos, combinando sílabas, tentando formar uma palavra sonora.

Nada conseguindo, sentou-se à mesa de jantar, abriu um atlas. O periquito saltou-lhe da mão, escorregou na folha de papel, moveu-se desajeitado, percorreu lento vários países, transpôs rios e mares, deteve-se numa terra de cinco letras.

– Como se chama este lugar, Maria Júlia?

Maria Júlia veio da cozinha, soletrou e decidiu:

– Minsk.

– Esquisito. Minsk?

– É.

Não confiando na ciência da irmã, Luciana pegou o livro, avizinhou-se de mamãe, apontou o nome que negrejava na carta, junto aos pés do periquito:

– Diga isto aqui, mamãe.

– Minsk.

– Engraçado. Pois fica sendo Minsk, sim senhora. Caminhou muito e parou em Minsk. É Minsk.

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IN: RAMOS, Graciliano. Minsk. Ilustrações: Rosinha Campos. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2013, p. 7-11.

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“Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão.”

em carta a Raúl Navarro, tradutor, nov.1937