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A consciência dos sonhos

Publicado em 01 d março d 2014

Do jornal O Globo, Caderno Prosa
Por LUIZ FERNANDO CARVALHO (*)
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Diretor de ‘Alexandre e outros heróis’, especial de TV baseado nas histórias infantojuvenis de Graciliano Ramos, examina dimensões mítica, utópica e humana na obra do alagoano

Quando você conhece e convive com escritores — digo na minha vida particular — e ali, na imensa maioria dos papos sobre predileção literária, um único nome é repetido por gente muito diferente, é coisa para se levar a sério. Mesmo que você não se interesse tanto por literatura, pouco importa, quando um dia se deparar com um Graciliano entre as mãos e tiver a coragem de arregaçar em qualquer página e largar os olhos, duvido muito que a leitura não te arraste fácil para as páginas seguintes. Isso é comum na história da literatura.

Sempre houve aqueles que eram os faróis da turma, que atravessaram gerações e gerações espalhando luzes. Pergunte ao Paul Auster quem ele lia direto. Pergunte a Ian McEwan. Ou passe os olhos nos diários de Borges, você vai encontrar a mesma resposta: William Faulkner! Num certo sentido, Graciliano Ramos é nosso Faulkner, nossa luz, não na mesma linguagem ou estilo, que nisto são diametralmente opostos, mas no manejo com os vocábulos, na precisão simétrica. Era como ele próprio dizia: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

A cada dia de gravação de “Alexandre e outros heróis” meu esforço e dedicação soavam mais e mais inúteis quando me lembrava destas palavras do escritor. Que conjunto de imagens seria este, capaz de articular uma narrativa que representasse o rigor de uma forma que se equivalesse à verticalidade de seu conteúdo moral, sem que com isso se perdesse o gesto cômico tão presente no enredo? Poucas imagens se sustentam — eu pensava. Mas, afinal, que entrelinha moral era essa que eu tateava? No meu modo de ver, a fábula de Alexandre não se interessa apenas pelo bem e pelo mal como as fábulas europeias do século IX. Nas entrelinhas de Alexandre há a simpatia cordial pelos fracos e injustiçados. Seu sentimentalismo mal dissimulado é o protesto de um coração sensível contra o materialismo implacável deste mundo.

Talvez por isso, muito se diz que as histórias de Alexandre são quixotescas. Entendo aonde querem chegar, mas, apesar de entrever aí um imenso grau de elogio, não concordo. Dom Quixote estava sempre escolhendo entre o bem e o mal, mas fazia essas escolhas em seu estado de sonho, e só entrava na realidade quando estava tão ocupado tentando lidar com as pessoas que não tinha tempo para distinguir entre o bem e o mal. Ao seu modo, comprometido com a realidade que o cerca, Alexandre cria pela imaginação um mundo que o compensa de sua penúria. Ele fustiga a realidade e a enfrenta, investigando-a com seu olho transpassado. Não um olho de inventar maravilhas, mas o olho torto, de ver claro a moral das coisas. Ora, como nós só existimos em vida e na vida, precisamos dedicar nosso tempo a estarmos vivos. Por sua vez, vida é movimento, e o movimento está ligado àquilo que faz com que a humanidade se mova: amor, poder, ambição, prazer etc. O tempo que um homem, nos dias de hoje, terá para dedicar-se às questões de relevância moral, ah!, ele o terá que arrancar à força do movimento do qual faz parte para que aí então possa continuar a viver consigo mesmo no dia seguinte.

Em Alexandre, este anseio moral se expressa através de sua imaginação que é em si a marca de sua audácia: a necessidade de sonhar e de compartilhar este sonho. Portanto, sua utopia vai além, mais justa e lúdica consigo mesmo e também para com seu bloco de sujos, sua audiência de excluídos: um cantador de emboladas, um cigano sertanejo, uma benzedeira, um cego. Excluídos do mundo da produção e do trabalho, parecem adquirir, assim, com o estigma da marginalidade, uma aura sagrada.

As histórias de Alexandre, se não são originais e se pertencem ao folclore do Nordeste, obedecem a um sentido definido. Este homem que fala a ouvintes obscuros mantém, por meio da imaginação, a capacidade de evocar, sob uma forma mítica, a existência de um mundo melhor do qual todos deveriam compartir. Sua substância como personagem não é a de um vulgar contador de vantagens. Alexandre representa a memória de um Imaginário. E, assim como nós, caminhando sobre o real dos dias, Alexandre terá sempre que fazer a tal escolha entre o bem e o mal. Sua consciência moral (como a nossa) parece ser a maldição que tem de aceitar dos deuses a fim de obter deles o direito de sonhar. Mas a consciência de Alexandre é o seu bem maior. E então, de sonho em sonho, sua natureza o coloca lúcido diante do todo, com a consciência de que foi criado e que não está vagando cegamente pelo paraíso.

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(*) Luiz Fernando Carvalho é diretor de “Alexandre e outros heróis”, especial inspirado na obra infantojuvenil de Graciliano Ramos, que vai ao ar na TV Globo dia 18.dez.2013.

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“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso.
A palavra foi feita para dizer.”

em entrevista a Joel Silveira, 1948