Graciliano, o turrão
Publicado em 01 d novembro d 2014
por José Castello
Para o Caderno Prosa do jornal O Globo
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No ano de 1941, o repórter Paulo de Albuquerque, de A Gazeta, oferece a Graciliano Ramos a pergunta clássica: “Como se faz um romance?”. A resposta o desarma: “Mas eu ainda não escrevi nenhum romance”. Àquela altura, Gracilano (1892-1953) já tinha publicado três romances: “Caetés”, de 1933, “São Bernardo”, de 1934, e “Angústia”, de 1936. Surpreso, o jornalista lhe refresca a memória. “Mas não são romances. São borracheiras”, Graciliano insiste.
Severo na avaliação de seu trabalho, que considera simples tolices, Graciliano diz a respeito de São Bernardo: “É menos ruim que Caetés, mas não chega a ser um romance”. Quanto a “Angústia”, admite que só levou o projeto do livro até o fim para atender aos pedidos insistentes da amiga Rachel de Queiroz, “que me amolava todo dia para que eu continuasse”. Não fosse isso, assegura, Angústia — que se originou de um conto — “até hoje estaria atirado de lado”.
Os depoimentos estão em “Conversas/ Graciliano Ramos”, livro organizado por Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla (Record). Reveladora coletânea que chega ao mercado acompanhada de “Graciliano Ramos/ Biografia ilustrada”, de Selma Caetano (mesma editora). As opiniões severas do escritor a respeito de seus próprios livros — que até hoje nos incomodam e espantam — correspondem a suas teses a respeito do fazer literário. Como esta, relembrada por Selma em seu livro: “Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias”. Faz uso, então, de uma imagem trivial: “É como pano lavado que se estira no varal. Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício”.
Por que as avaliações impiedosas que Graciliano faz a respeito do próprio trabalho nos surpreendem? A resposta é simples: elas contrastam com um ambiente literário — o contemporâneo — em que a vaidade e o auto-elogio se disseminam. Os escritores se tornaram celebridades. Astros da cultura pop. Já Graciliano desprezava o culto da própria imagem. Ele renega também, com veemência, o rótulo de modernista — que alguns, ainda hoje, ostentam como uma comenda. “Não fui modernista, nem sou pós-moderno. Sou apenas um romancista de quinta ordem”.
O aparente desdém pela própria obra esconde, contudo, um segundo sentimento, ainda mais forte: o de que a literatura não é superior a nada que seja humano. Para Graciliano, a vida vem sempre em primeiro lugar. Por isso também desdenha os gramáticos, profissionais da organização e da domesticação da língua, que ele considera puro improviso e mutação. “Será preciso outro movimento modernista contra os gramáticos”, diz em entrevista a Osório Nunes, do jornal literário Dom Casmurro. À Folha da Manhã, anos depois, ele insiste: “Não me considero um escritor”. Acredita que ainda viveria nos sertões das Alagoas se não o trouxessem, preso, para o sul.
Mais uma vez, é inflexível — quase cruel — consigo mesmo: “Não gosto de nenhum de meus livros”. É, antes de tudo, um homem seco. Define-se: “Não tenho saudades de nada. Não tenho predileções por nenhum prato. Odeio esportes. Não gosto de praias. Detesto viagens”. Vê-se, mais, como um caramujo, satisfeito com a própria concha. Diante da agitação do mundo, e embora defenda (e exercite) o engajamento político, prega a imobilidade pessoal. “Vivo bem onde estou. O que não quero é mudar-me”. Não fosse a prisão, ainda estaria em Alagoas. “Sim, vim preso num porão de navio, sem pagar passagem”, ironiza.
Enfatiza, sempre, sua indiferença pela carreira de escritor. “Até hoje não me considero escritor nem jornalista. Fui obrigado a escrever porque não tinha outro ofício. Todas as portas estavam fechadas. Gostaria de viver sem trabalhar como muita gente”. Páginas à frente, José Tavares de Miranda, da Folha da Manhã, reúne — no ano de 1951 — novas impressões sobre o escritor. Recorda, então, os tempos de Graciliano em Palmeira dos Índios, quando “escrevia também romances, mas os queimou todos”. Certa vez, confrontado com sua fama de incendiário, o escritor, em vez de defender-se, foi mais longe: “Também Caetés deveria ter sido queimado”. Comenta o cronista, com razão, que, quando afirma não gostar de nenhum de seus romances, Graciliano o diz sinceramente e porque acredita nisso. “Nele não percebemos a falsa modéstia dos medíocres”.
Suspeitava das diabruras gramaticais praticadas pelos modernistas. “Quando eu cometer um erro, podem considerar que o cometi por burrice”. Mas seu alvo preferido é ele mesmo. Ainda em 1951, em longa conversa com Miécio Tati, da revista Temário — vinculada ao Partido Comunista do Brasil —, Graciliano volta à carga: “Nunca estudei, sou ignorante e julgo que meus escritos não prestam”. Um pouco à frente, sem nenhuma precaução, prossegue: “Escrevo, invento mentiras sem dificuldades. Mas as minhas mãos são fracas e nunca realizo o que imagino”.
Quando Tati realça o valor inegável de seus romances, ele reage com veemência: “Qual nada! A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a humanidade”. E, mais uma vez, luta para se definir: “Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora?” Reconhece seu incômodo com as entrevistas. “A idéia é desagradável de explicar-se aos outros sobre coisas que só são interessantes para nós”. Argumenta o repórter que é exatamente disso que as pessoas gostam de saber. Por exemplo, como um escritor incorpora a realidade a seus livros. É ríspido com seu próprio método de trabalho: “Extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço”.
Além de um grande escritor, Graciliano Ramos foi — isso se evidencia, em definitivo, em Conversas — um homem transparente, que critica a si mesmo, sem pudores e sem afetação. Nos tempos do marketing, dos selfies e das embalagens, quando o Eu se embeleza e se ostenta, torna-se um turrão exemplar. Com quem temos agora a chance dupla de nos reencontrar.
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