Silêncio de sertanejo
Publicado em 14 d novembro d 2014
Por ANA WEISS
para o caderno Cultura da revista ISTO É
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Pela primeira vez em livro, textos de intelectuais próximos de Graciliano Ramos relatam o temperamento difícil e o humor ácido do autor de “Vidas Secas”
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Graciliano Ramos se cansava com a descrição festiva da figura nordestina. O sertanejo criado pelo escritor pouco falava, assim como ele mesmo, contam os amigos, escritores e jornalistas que orbitavam o editor ranzinza da José Olympio no final dos anos 1930, quando lançou “Vidas Secas”, romance fundamental da literatura moderna brasileira. O Velho Graça não gostava de conversa à toa.
Joel Silveira passou meses tentando entrevistar o autor de “Angústia” e “São Bernardo”. “Pelo menos duas vezes por semana lá estava eu na José Olympio aporrinhando”, escreve. O jornalista sergipano tinha a missão de entregar um perfil de Graciliano, conta ele em um dos textos escolhidos para “Conversas”, livro organizado pelos pesquisadores Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. O cerco paciente ao personagem de quem acabou se tornando amigo contém confissões que deram origem a uma crônica comovente e engraçada, que Joel Silveira guardou por muitos anos. “Se ele não me der entrevista, alinhavo em cinco laudas tudo isso que ele está falando”, escreve em outro momento do texto datado de 1938. O futuro autor de “Tempo de Contar” publicou na imprensa mais de um perfil de Graciliano Ramos.
A preocupação dos pesquisadores aqui foi recompor a figura austera e o humor agudo do autor alagoano, a partir de relatos do ponto de vista de quem o observava, como Aurélio Buarque de Holanda, numa pequena crônica sobre a tarde em que um morcego pousou em um dos ombros do Graça, “com a mesma naturalidade com que a ave preta se instalou no busto de Palas”. “Isso é um morcego domesticado que o velho usa para se poder dizer que ele é um infeliz, que ‘um morcego pousou na sua sorte’”, teria dito o terceiro amigo da roda, José Lins do Rego – quem aliás, Graciliano insistia para tomar seu lugar no perfil de Joel Silveira.
Das conversas, algumas revelam um humor pouco conhecido do autor de “Memórias do Cárcere”. Mas também a sua verve crítica, sobretudo aos jovens autores que lhe mandavam originais – “esses sujeitos pensam que escrevem” –, ou ainda a colegas de mesma estatura, sobretudo aos que foram voltando o tema para o regionalismo. “O sertanejo nordestino aparece na literatura (regional) como um tagarela, fazendo imagens arrevesadas e desmesurando-se numa loquacidade extraordinária”, disse ao historiador Brito Broca, responsável pela coluna “Livros e Autores” do jornal “A Gazeta”, numa entrevista realizada quando o autor trabalhava em “Vidas Secas”. “Pois nada mais postiço: o sertanejo é de pouquíssimo falar. Sisudo e macambúzio, ele vive quase sempre fechado consigo mesmo.” Falando do homem que melhor retratou, Graciliano Ramos também se descrevia. E aí reside um dos grandes méritos da coletânea que a Record lança agora: tirar do silêncio do escritor os aspectos que só os muito próximos e conhecedores de sua trajetória poderiam relatar a respeito do sertanejo que estabeleceu o romance moderno regional brasileiro.
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