Trabalhos acadêmicos

Mal sem mudança – Notas iniciais sobre Angústia

Publicado em 10 d setembro d 2012

Erwin Torralbo Gimenez
Professor de Literatura Brasileira
Universidade de São Paulo – USP

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RESUMO

O ensaio procura apontar as linhas de força que compõem o caráter dramático do narrador em Angústia. Estuda, para tanto, o movimento circular da escrita, cuja forma embaralha tempos e espaços de modo a sugerir o desconcerto. Como resultado parcial, centra-se, em termos de análise, nos primeiros fragmentos do romance a fim de compreender o refluxo das imagens que perfazem o enredo.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, Romance, Angústia, Discurso patético

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ABSTRACT

This essay attempts to highlight the main thrusts of the dramatic ethos of the narrator of Graciliano Ramos’ novel Anguish [New York: Alfred A. Knopf, 1946]. To this end, it studies the circular motion of the writing, which shuffles time and space to suggest disarray. In order to understand the reflux of images that make up the plot, its main analytical focus is, at least in part, the first fragments of the novel.

Keywords: Graciliano Ramos, Novel, Angústia, Pathetic discourse

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“A natureza do homem não é ir sempre em frente; comporta idas e voltas.
A febre tem calafrios e ardores, e o frio mostra-lhe a intensidade tanto quanto o próprio calor.
O mesmo ocorre com as invenções dos homens através dos séculos. E também com a bondade e a malícia do mundo em geral: Plerumque gratae principibus vices.”
(Pascal)

“Já não me entendo mais. Meu subconsciente
Me serve angústia em vez de fantasia,
Medos em vez de imagens. E em sombria
Pena se faz passado o meu presente.”
(Manuel Bandeira)

 

I

Angústia assinala, talvez, na obra de Graciliano Ramos, o momento mais representativo dentro da prosa de 30, no que diz respeito ao sentimento de uma época e ao engenho de uma forma para lhe dar expressão. Partilhando com o narrador o mesmo dilema na sociedade – o do intelectual retraído e odiento –, o autor forja dramaticamente os círculos de tortura em que se debate, revelando no fundo as linhas de um desastre coletivo. Esse testemunho, por sua vez, traduzido em estilo literário, aos poucos emerge de um tecido nuvioso e funesto, na medida em que apanha a personagem ainda rodeada por fantasmas e assim revive em sua fala as dobras de um desequilíbrio. A narrativa, com isso, semelha o relato de pesadelo, entre lucidez e espanto.

No itinerário dos seus livros, Caetés apresenta, em termos de juízo e de estética, o projeto do romancista, esboçando o circuito fechado da nossa história com a deslocação indecisa das notas de costumes para o ponto de vista solitário. Contudo, em seus limites de ambiente e de perspectiva, o título de estreia anuncia um talento que só adiante ganharia apuro. Conforme decanta a técnica num realismo já capaz de filtrar o problema pela tensão subjetiva, São Bernardo se aprofunda, com efeito, na análise de um drama. Em vez do foco erradio, firma-se o ângulo no centro da memória, que repartida em faces contrárias ao mesmo tempo consterna e imobiliza; remorde as vivências, mas não fornece nenhum alívio.

O drama de Paulo Honório, proprietário construído, acolhe o cruzamento de forças que a princípio se dividem entre ele e a esposa, e depois, arruinando um e outro pelo contraste, se confundem no sujeito da escrita para formular o romance. Como olhar oculto, e portanto criativo, depreende-se a visada do autor que, graças à sua posição do meio, está acima dos extremos, quer o apego à ordem, quer os arroubos de revolução, e logo representa com o embate dos opostos o sentido da realidade à sua volta. Tal visão parece derivar do lugar social, o característico pobre-diabo de 30, entre os donos do poder e os miseráveis, e permite encarar o contexto para além das contingências de classe – será, pois, essa a figura que antes orquestrou nas entrelinhas o infortúnio do fazendeiro e da professora, e agora se fixa na cidade, o protagonista do livro seguinte. Decorre daí o caráter de maior significância de Angústia, independentemente do conceito de valor, porque é o romance que guarda mais estreito laço com o próprio escritor, embora nunca se deva ignorar o empenho artístico; aliás, justamente esse trata de refundir as impressões do período em imagens, as quais turvam os objetos para alumiar o mundo de través.

Aristóteles (1987), ao estudar o mito trágico, pondera: “Mais persuasivos, com efeito, são os poetas que, naturalmente movidos de ânimo igual ao das suas personagens, vivem as mesmas paixões; e por isso, o que está violentamente agitado excita nos outros a mesma agitação, e o irado, a mesma ira”. Diferente então dos romances anteriores, em que o veio patético, plasmável, entoava vozes aparentemente alheias ao criador, Angústia encena uma dicção quase rente ao seu ânimo. No entanto, também aqui há o jogo difícil da ironia: o pobre-diabo Luís da Silva sente cerrarem-se em derredor as esferas de tempo e espaço, ou seja, as cadeias que soldam o passado e o presente, o sertão e o litoral, além dos tantos derivativos dos mesmos eixos; por agonia trágica, faz-se agente da catarse, matando o antípoda Julião Tavares, e incontinenti percebe a inocuidade da ação, que não rompe os cercos; sob o torpor desse novo revés, escreve os fragmentos de um enredo circular – assim, o expediente irônico do romancista converte em forma literária os círculos que enrodilham sem escape o narrador. Tanto que a persuasão apenas se constitui, envolvendo o leitor na mesma atmosfera crispada, em razão da estratégia que logra transfigurar a experiência em atitude literária. O autor procede ao desdobramento da própria individualidade e, no manejo da forma, absorve e refrata os raios da empiria, de maneira a torná-la problemática como planos da mimese. Ao precipitar o protagonista no inferno íntimo, cujas circunferências são o traçado do pathos comum, ele imprime sobre as estruturas narrativas o périplo de uma desdita e punge o leitor a igual disposição. Talvez por isso Lins do Rêgo (1943) haja dito que o amigo operava o ofício com a arte “de palavras precisas, mas de paixões indomáveis”.

Graciliano Ramos, nas Memórias do cárcere, ao pensar no volume que então acabara de enviar ao editor, comenta-o: “Romance desagradável, abafado, ambiente sujo, povoado de ratos, cheio de podridões, de lixo. Nenhuma concessão ao gosto do público. Solilóquio doido, enervante”. E imagina os exemplares encalhados na livraria. De fato repontam, no comentário, os dois pilares de arquitetura que geram no esquema do romance a tensão insolúvel: o espaço degradado, onde se multiplicam sujeiras e vícios, e o tempo intimamente dilacerado da personagem, capturado em sua fala solitária. Devido à natureza das suas penas, o narrador recai na incomunicabilidade e resvala num discurso autoflagelador, à proporção que deplora a sociedade contraditória e se reconhece impotente para mudá-la. Resulta do impasse, assim, a voz dissidente de quem espicaça as contradições na vida interior, obstado de modulá-la pelo acorde geral; porém, sendo doido, e portanto deformante, o solilóquio também enerva o espírito do público, distorce a sua expectativa e impele ao desconcerto. Em segunda nota, muitas páginas adiante nas Memórias, temos:

Arriscara-me a fixar a decadência da família rural, a ruína da burguesia, a imprensa corrupta, a malandragem política, e atrevera-me a estudar a loucura e o crime. Ninguém tratava disso, referiam-se a um drama sentimental e besta em cidade pequena. Admirou-me depois o excessivo número de críticas à minha história sombria, e espantei-me de vê-la bem aceita e reproduzida, mas ali na cadeia apenas me surgiu a meia dúzia de artigos.

Lendo as resenhas que lhe chegam na prisão, aborrece-o o exame ligeiro do livro, como se fosse reles a ponto de cativar somente com o caso de ciúmes e desagravo passional. Nos seus propósitos, ao contrário, estava entramar na representação o lastro trágico da sociedade brasileira, sob o crivo de um ânimo inajustável e siderado: “Ali a personagem central estava parada, revolvendo casos bestas, inúteis” (Ramos, 1953b). O projeto sugere, com efeito, grande ambição: abarcar a matéria particular, a tragédia que se abre meio a frações inconciliáveis, abolindo da ficção o ritmo convencional – numa palavra, forjar a síntese da expressão moderna. Os sinais de falência se espalham no entrecho: esfarelam-se a tradição sertaneja e a impostura burguesa, corruptora das letras oficiais e da política; e no mesmo passo, o naufrágio atinge contundente o ângulo narrativo, concedido a alguém que é partícipe e rebelde dessas zonas em desmantelo. O crime não faz cessar o pathos, e a loucura é o refluxo dramático dessa ironia.

Luís da Silva é em tudo um desventurado. Da solidão curtida na infância, crescendo entre os vestígios de um patriarcado decadente e alienado no pretérito, vagando depois como mestre-escola em propriedades rurais, mendigo na capital e revisor em periódicos, até pendurar-se no funcionalismo público e na imprensa servil. De ponta a ponta, o fracasso inunda a sua trajetória e se inflecte corrosivo para a consciência, a qual nada pode senão envenenar-se frente às adversidades e repudiar inerte a perversidade dos valores. Moralmente enforcado no presente, procura asilo no passado; mas, tanto lá quanto cá sempre padece, tiranizado e esquivo. Impossível respirar no presente, pois em todos os degraus está inadaptado; irrespirável é também o ar que ventila das recordações, pois a alma partida pouco a pouco vislumbra o ciclo de repetências entre as idades e o arroja no redemoinho. Afinal, resta-lhe o exílio da escrita de confissão, cujo feitio circular, como a refletir um suplício de emparedado, rumina os traumas, os devaneios, as cóleras e as veleidades de modo a comover o leitor e enfim entornar o saldo negativo da vida.

Angústia parece emaranhar, de fato, os ziguezagues e entrecortes típicos de uma psique demolida sob os abalos da negatividade que se instala no cerne do indivíduo. Os excessos e insignificâncias, as descosturas e rebarbas profusas na superfície do texto impregnam a composição a fim de suscitar, num realismo crítico, os aspectos de tumulto e desenraizamento peculiares ao fracassado – é o que, aliás, teve de confirmar o próprio Graciliano, embora contrafeito, em carta ao pesquisador Cassiano Nunes (1992):

Acho em Angústia numerosos defeitos, repetições excessivas, minúcias talvez desnecessárias. E tudo mal escrito. Mas se, apesar disso, der ao leitor uma impressão razoável, devo concordar com v. É possível até que as falhas tenham concorrido para levar na história aparência de realidade. E alguns capítulos não me parecem ruins.1

Subjazem aos estilhaços discursivos, todavia, os fios de uma rede problemática, responsáveis por concatenar as partes em simetrias, tecendo a conjunção de imagens e a tonalidade na aparência errática.

Ato-contínuo, a análise do universo medíocre se ancora na óptica do obscuro Luís da Silva. Em nome da fatura expressiva, a sondagem se cola às sinuosidades de um caráter vacilante, em termos sociais e psicológicos, à medida que ele ao mesmo tempo se envilece nas práticas ordinárias e não deixa de estar arredio ao seu domínio. Imerso no mundo abjeto, mantém com ele um duelo perene, porque nem o tolera, nem o pode abandonar. Encarnando o pobre-diabo, espécie de anfíbio que oscila entre as margens, carece de ponto fixo e, por conseguinte, não se apaga atrás das marcas da tipicidade, compreende o sentido da teia no conjunto; entretanto, tal condição atulha a consciência de ultraje e paralisia, pois sempre preso à teia, acumula fermentos de ódio sem comunicar com os demais. Vê-se espremer entre os dois marcos da sociedade – de um lado o povo, que o olha com desconfiança, e de outro a elite, que o amordaça ao dobrá-lo a seu interesse –, sem jamais aportar em nenhum deles; vê-se de igual modo prensado entre os reflexos do passado rústico, quando usufruía de posses, apesar de já mesquinhas, e os reflexos do presente que, bem vistos após declinar à indigência, levam-no a descobrir o seguimento da opressão. Acresçam-se ainda os muitos recalcamentos no roteiro dos afetos e da libido e completa-se assim o retrato das paixões.

Quando lhe indagam, por exemplo, quem é, em demanda banal por uma referência, o amanuense se atrapalha: “Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fiz um gesto vago, procurando no ar os fragmentos da minha existência espalhada”, e só lhe ocorre responder: “– Luís da Silva. Rua do Macena, número tanto. Prazer em conhecê-lo”. Nessa brecha sensível, entre a máscara externa e a agitação interna, é que se instaura a tensão: nada há no espaço de seguro para lhe assentar a identidade, toda esmigalhada e dispersa na atmosfera, enquanto o mundo se movimenta opaco.2 Foi Mario de Andrade (1972) quem melhor observou a autenticidade do processo:

Dissecou a alma que tinha em mãos, reconstituiu-a em seguida com uma multiplicidade admirável dentro de sua monotonia pungente. Não há dúvida nenhuma que Angústia é uma das obras mais difíceis de se ler da nossa literatura atual. Não por ser indigesta ou defeituosa, mas pelas suas próprias qualidades.

O crítico sublinha, de um lado, o arranjo duplo do autor, que escava meticuloso o âmago da personagem, afasta e reúne os vários cacos da sua intimidade, e de outro, o conflito vertido em linguagem, tão custoso de acompanhar justo por fazer coincidirem a monotonia da realidade e a pungência do indivíduo. Com efeito, o espelhamento da identidade fragmentária sobre a forma do romance torna complexa a estrutura do tempo narrativo, o qual também constantemente se fraciona e se reconcentra em células patéticas – segundo Antonio Candido (2002): “um tempo novelístico mais rico e, diríamos, tríplice, pois cada fato apresenta ao menos três faces: a sua realidade objetiva, a sua referência à experiência passada, a sua deformação por uma crispada visão subjetiva”.

Trata-se de uma dialética cuja síntese se funda no realismo deformador. Como não se inventa meio de remover os óbices da inquietude – e os arcos temporais desenham círculos frequentes –, o eu se choca tragicamente contra o mundo, essa matéria infausta com que nunca se chega à fusão lírica nem nunca se trava a distância épica. De toda maneira, sustém-se a consciência na intersecção do real e do sombrio, triturados pela subjetividade e projetados no vir a ser dramático; a grandeza do pathos e a penúria da existência se quebram em névoas do delírio, solução formal que termina e começa o livro, ou vice-versa. Por não encontrar vocabulário teórico correspondente ao estilo de Angústia, Carpeaux (s. d.) prefere considerá-lo “um romance-poema ou romance poemático”, visto que os substratos de miséria e tristeza surgem nele atravessados de introspecção, num amálgama poético.

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II

Quem conclui a leitura de Angústia está obrigado a retroceder às páginas iniciais, tanto quanto as percorreu sem entender da primeira vez. O delírio final é o desaguadouro dos vultos obsedantes que se carrearam e, em estado de transe, afogam o espírito do narrador na estreiteza do quarto. Recobrando algum raciocínio, relata:

Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. (Ramos, 1953a)

O parágrafo introduz, em chave de metonímia, os traços da desorientação que, ao esbater mutuamente os signos, cria um singular alinhavo. A análise estilística do seu fraseio deve indicar esse movimento. O primeiro período coordena com o uso da adversativa dois lances: o sujeito está de pé há cerca de um mês, mas o juízo atual não se pode garantir estável, sofre ainda certo contágio do tresvario – a verticalidade do corpo não clareou por completo a memória. O segundo período, mais longo, grava em seu deslizamento acidentado o vaivém das imagens: as aparições geradas na dissolvência do delírio se adelgaçam em nuvens, que agora se mesclam aos objetos circunstantes para embotar o senso de realidade. Mas observemos o emprego dos verbos e dos signos que os regem: os transportes alucinatórios, as visões, se subjetivam no imperfeito perseguiam, com o aspecto durativo de um pretérito, e logo se atenuam em resíduos, as sombras; essas, por seu turno, já se repercutem no presente permanecem, o qual todavia guarda um elo semântico com o passado; o termo se redobra, com realce sonoro, e ainda no presente se mistura aos elementos concretos, assim ambos se turvam reciprocamente e estremecem o sujeito no golpe dúplice dos calafrios. Tal signo ganha alto relevo no fecho do esquema, porque aglutina nas faces do significante e do significado os vetores da tensão; trata-se da contração de duas palavras antitéticas, calor e frio (do latim cale e frige), atadas aqui como índice de um paradoxo. Nas duas pontas, portanto, tem-se a ambiguidade do sujeito, suspenso ora em visões, ora em calafrios, e no trânsito entre elas a interpenetração do abstrato e do concreto – as sombras e a realidade –, trançando os nervos da matéria. Se o passado timbra em ensombrar o presente, não há a fluidez do lírico; se o presente se encrava no passado, não há a objetividade do épico.

O procedimento valerá, talvez, para todo o romance, visto que já no pórtico se anuncia o narrador calafriado, cuja perspectiva circula pelos tempos e espaços sem despiste do patético. Inclusive, no curso problemático dos eventos, erguem-se ondas reversas: “Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba”, amarga Luís da Silva; e quase ao fim, enquanto espreita o rival para eliminá-lo, palmilha simbolicamente os arrabaldes mal iluminados (“Ali era o silêncio, uma sombra que algumas lâmpadas muito distanciadas e os becos por onde espirra um pouco de luz interrompiam”), e conjectura a serenidade potencial da cegueira: “Estimaria que os fios da Nordeste encrencassem e a cidade ficasse às escuras. Mover-me-ia como um cego, esqueceria as mulheres pintadas que imitam D. Mercedes, esqueceria Julião Tavares, que estava em todos os bancos. A treva apagaria aquela exposição desagradável”, como se apenas as figuras palpáveis o molestassem – porém, esclarece rápido o desatino: “Mas dar-me-ia a recordação de coisas mais desagradáveis ainda”. O cinzento é o verdadeiro matiz do seu drama.

Retornando às primeiras páginas do relato, vemos os embaraços de Luís da Silva, perplexo com os assaltos que as lembranças lhe fazem, pois na rua ou em casa os espectros do seu terror o encalçam e emperram as ideias. Certos perfis sociais o acabrunham. Os vagabundos maçantes e os literatos venais, que lhe oferecem o espelho do próprio aviltamento; os tipos bestas, políticos, negociantes e funcionários graúdos, que o espezinham ostensivos – enfim, reingressa no ciclo de pobre-diabo. A atmosfera, contudo, se mostra ainda mais opressa, infiltrada de assombrações, como a fisionomia balofa do morto Julião Tavares a se recortar sobre o papel. Ironicamente, o seu crime, além de não alterar em nada a rotina, acirra o mal-estar e o volve em pesadelo. Confundem-se, nessas espirais, figuras nítidas e baças, inextricáveis todas, porque emanam do mesmo núcleo – a tensão que persiste.

No centro da passagem, grafa-se um enigma: as duas sequências de palavras que se compõem com as letras do nome Marina decomposto. Atordoado, o pensamento afasta o artigo sob encomenda e envereda para o jogo poético, ou seja, esquiva-se da linguagem corrente e tropeça em “coisas absurdas”. Ar, mar, rima, arma, ira, amar. À luz do enredo, a primeira série pode ser lida como contraponto simétrico da realidade, enfeixando imagens que giram em torno do eixo aspiração. Ar e mar pintam o cenário natural de vastidão, propício à atitude contemplativa; arma e ira remetem às empresas heroicas, votadas a corrigir nobremente as falhas do mundo em combates legítimos e restaurar a harmonia; rima e amar sugerem a consonância das almas, enleadas na demanda amorosa que ecoa sem ruídos na estatura do belo. Para não sucumbir ao peso do real, o devaneio parece engendrar sombras, nascidas da idealidade, as quais revestiriam as suas ações de caráter elevado e sublime. Seriam assim genuínas a fúria e a pena de morte, instrumentos da altivez que purgam do mundo os antagonismos, recuperam os homens para a natureza. O conjunto de signos modela, aliás, um ritmo harmônico que se abre e se cerra com a mesma sílaba; mas também traz as marcas da fragmentação, truncando a linha da frase em palavras isoladas. À margem delas, Luís da Silva rabisca alguns desenhos: uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher – alegorias do épico e do lírico, espada e lira resumem os anseios do sujeito, porém a terceira imagem destoa ambivalente. Alusão ao mito de Medusa, a cabeça de mulher evoca na tradição clássica o encanto feminino portador da desgraça – figura ambígua, reúne êxtase e calamidade. E nos volteios da fantasia, tal símbolo estorva a embriaguez que sublimava os fatos, porque faz rememorar o clima baixo da sua história. Sobrevêm os aspectos do ramerrão, as tarefas cacetes, as humilhações cotidianas, as dívidas e “coisas piores, muito piores”, esfumando tudo em fracasso. Ar, mar, ria, arma, ira. A segunda série de palavras enumera termos que giram em torno do eixo corrupção. Em declínio abrupto, invertem-se os sinais: agora ar e mar ressuscitam, na ambivalência do vivido, a sensação de asfixia que sempre o ronda, desde a cena do poço onde aprendeu a nadar entre cobras e mergulhos forçados; arma e ira, por sua vez, perdem a aura do heroico e acusam na consciência o crime recém-perpetrado; e mais intensa ainda, a troca de rima e amar (cujo extravio denota o eclipse lírico) por ria esmaga as venturas até o rasteiro do cômico. As instâncias do onírico e do sórdido, o alto e o baixo, defluem de uma só matriz, são a cara e a coroa da moeda dramática.

Desmontar as letras do nome Marina e recombiná-las em signos avessos, esse duplo movimento de engano e desengano da memória, são exercícios baldados, pois a linguagem resulta insuficiente para redimir a experiência. Todavia, o narrador continua o seu solilóquio patético: “E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas”. Indissipável a tensão, decide empastar os rascunhos numa nódoa difusa, com vistas a anular os seus choques. Semelhante divertimento, recorda adiante, o absorvia por largas horas, enquanto desconsertava os anúncios do comércio em combinações díspares; e de igual maneira, as letras bailavam nas paredes durante a febre, transmudavam-se em figurinhas insignificantes, os tantos desvalidos, que se iam abrigar na cama do enfermo. O delírio ao fim revolve e mistura as imagens para forjar no sonho o que a vida recusou; se aquelas arestas reincidem no meridiano da inteligência, é preciso voltar a decompor e recompor o mundo em imagens. Metáfora da luta vã com as palavras, o desmanche do vocábulo em séries de aspiração e corrupção capta os círculos da angústia, síntese de sujeito e objeto, poesia e negatividade.

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III

O perfil dramático do narrador, envolto em sombras, faz reconhecer no presente da escrita os índices que vincam a sua realidade, ironicamente inalterada após os eventos. Tudo roda num só emaranhado, entorpecedor, e baralhando tempos e espaços precipita o ritmo delirante do livro. Conforme se infunde outra vez a dupla sensação de achatamento e rebeldia, sempre nas voltas da angústia, apaga-se a distância entre os planos da memória e reinstala-se o sujeito na cadeia patética. Dentro desse círculo, ele pode apenas enxergar os vetores opostos que o espreitam, como margens desastrosas: ou imerge no cotidiano ignóbil, resvalando para o cômico, ou corta as amarras da monotonia, elevando-se ao trágico. A ironia reside em já haver tentado as duas alternativas sem qualquer êxito, estando ainda preso na trama – praticar o servilismo e assassinar Julião Tavares foram gestos inúteis, pois a tensão continua.

Vida de sururu: a imagem resume exemplarmente a situação de Luís da Silva – o sururu é um molusco da costa brasileira, cerrado em sua concha; a palavra adquiriu também, na gíria, a acepção de motim, revolta, briga. O pobre-diabo, à semelhança do sururu, se conserva emparedado e inerte, opresso no estojo que lhe conferiu a sociedade, mas ali remói fantasias de insurreição. No domínio público, encolhe-se e tolera abusos, enquanto interiormente macera a inteligência e formula arrancos de valentia. Apesar de o impulso reativo não romper os confins do pensamento – e, com efeito, a peripécia equívoca em que resultou a ação da personagem é prova disso –, esse conflito se reverte em expediente de representação, de forma a sustentar a encruzilhada de uma crise sem elasticidade para lado algum. Eis o impasse dramático, segundo Staiger (1972): “Se dizemos que o trágico faz explodir os contornos de um mundo, diremos do cômico que ele extravasa as bordas desse mundo e acomoda-se à margem numa evidência despreocupada”. Nos dois extremos, a tensão se evolaria: ao ser derrubado para aquém de suas aspirações, fixando-se no baixo risível, o sujeito perderia toda carga problemática e se conformaria nas zonas de corrupção; ao arremeter-se acima do mundo, à procura do sublime, sofreria, por sua vez, o aniquilamento de um salto para além da realidade.

Na célula do pathos, Luís da Silva padece, sem escape, a instabilidade de sua canhestrice. Como recusa à queda definitiva no campo da comédia, enuncia no presente as negativas: “Não sou um rato, não quero ser um rato” – note-se que a primeira sentença parece lhe oferecer, por relutância, uma identidade avessa ao rebaixamento, mas logo a segunda diminui com a perífrase verbal o teor negativo e trai o desejo incerto de não descer até o último patamar, afinal não falta ocasião em que se porte similar ao rato. Simetricamente, na longa passagem do assassínio, afirma a si mesmo: “Eu era um homem. Ali eu era um homem” – durante as horas de perseguição ao rival, a quem deve eliminar por um desígnio inexorável, supõe altear-se à tragédia, seguro de assim merecer a dignidade, contudo também aqui a afirmativa oscila e restringe o raio da altivez à circunstância. “Inútil, tudo inútil”, conclui olhando o cadáver do antagonista, desfeita a ilusão de catarse. Enfim, a pergunta ordinária – O que você é, um homem ou um rato? –, cujos limites grifam caracteres díspares, do excelso ao ridículo, ecoa sem resposta na consciência do pobre-diabo, reencetando um círculo perpétuo; nenhum engano é suficiente para refletir o eu no mundo ou o mundo no eu.

É admirável, nesse sentido, a arte do capista Santa Rosa na edição original de Angústia. A pequena gravura que desenhou, ao pé da folha, destaca o retrato do protagonista: o corpo, entortado para um dos flancos, sugere a indecisão do funcionário entre o município, ao fundo, e a projeção vazia à frente do quadro; tem a cabeça pendida, em sinal de dolorosa humilhação, e as mãos cruzadas, dedos compressos, acentuam a cólera. Na dimensão vertical, o contraste claro-escuro lança a neblina em preto e branco, cinde imprecisamente as linhas, como a insinuar a contração dos fatores psíquicos e sociais responsáveis pela atmosfera do romance.

À maneira de um circuito em ponto menor, na parte referente ao estado atual do narrador, encaixam-se as duas viagens de bonde dentro do circuito mais largo das suas atribulações. A princípio, entra no veículo à toa e viaja pela cidade, ida e volta, espacial e temporalmente, do centro à periferia e do presente ao passado, num todo confuso. Saindo da repartição rumo a Ponta-da-Terra, excursiona por diversas paisagens de Maceió: à esquerda, as moradias imponentes, e à direita, os navios atracados – o centro, ambiente do trabalho maçador e área dos figurões, lhe impinge acanhamento; afastando-se o carro para a periferia, surgem os avessos da vida urbana, onde a pobreza exibe mazelas, casas de palha, doenças e barcos de pesca, as quais lhe causam horror. Configuram-se, portanto, nesse trajeto, as disparidades sociais que a cidade gera; tal itinerário explicita, aliás, o trânsito do protagonista nas raias da topografia urbana, indo de uma ponta a outra sem achar o seu lugar. Porém, as assimetrias não afloram claras em sua visão, antes o levam a entrançar os tempos – primeiro, juventude e atualidade –, na tentativa de refúgio aos incômodos presentes. A memória, a despeito do esforço de evasão, nada lhe fornece a não ser a constante impressão de isolamento. Recorda, há quinze anos, o quarto minúsculo e abafado na pensão de d. Aurora, quando cavava um emprego no Rio de Janeiro. Também lá só conheceu miséria e desamparo, um vagabundo entre os demais hóspedes, estudantes de medicina, vendo gorar o sonho de fazer carreira na capital, logo em regresso a Alagoas. Desponta, assim, a lembrança da fase em que declinou até o último grau, a mendicância, graças à vista dos excluídos, atores inconscientes da comédia mesquinha, na qual ele teme novamente ingressar. O círculo se fecha com o retorno ao centro, onde tampouco se pode desafogar, porque não lhe resta asilo em qualquer canto, nem no espaço nem no tempo.

Inicia-se, então, a segunda viagem, à medida que o veículo se dirige a arrabaldes longínquos, fora da cidade, conduzindo o passageiro por fluxos de igual modo justapostos: o cenário do crime e a infância sertaneja (“Quanto mais me aproximo de Bebedouro mais remoço”). Recuando a idade mais remota, desliza na memória para o sertão arcaico, oposto ao tumulto urbano, onde imagina haver reservas de tranquilidade, longe dos espectros de Marina e Julião Tavares. Todavia, de lá somente lhe chegam reminiscências de um avô caduco e um pai ausente, alheios ao falimento do poder que ainda queriam ostentar, arredado ele próprio na solitude. O bonde deriva para o interior, rumo ao terreno do enforcamento, e como antes ele acreditou que naquele ermo, livre das pressões citadinas, recuperava a virilidade, agora lembra o passado rústico. Tanto quanto a euforia do delito se mostrou vã, as recordações sertanejas apenas trazem ruínas: Luís da Silva nasceu já meio aos destroços do velho patriarcado, na fazenda decaída, herdeiro de uma soberba que não gozou materialmente; ao migrar para a cidade, teve de contentar-se com ofícios rasteiros, sob o mando dos bacharéis, que abomina por sentir-se roubado. Figura de transição, pobre-diabo, adveio de um mundo antigo em decomposição e não se insere no mundo burguês incipiente, embora haja vínculos fortes entre eles. Daí a sugestão de que se afastando do movimento urbano, recobraria a paz no mundo imóvel; sugestão semelhante o arrastou a emboscar e matar o inimigo, como um capanga feroz.3 “Quando o carro para, essas sombras antigas desaparecem de supetão – e vejo coisas que não me excitam nenhum interesse”: reversamente, a chegada a Bebedouro faz esvoaçarem as sombras da infância, pois a realidade concreta denuncia a vacuidade desse excurso. O traçado simbólico do bonde, fora da cidade, manifesta a impossível fuga da história, capaz de ligar as instâncias do tempo num continuum, ora refratário a qualquer golpe trágico. E revirando a memória, o indivíduo atinge o cerne do seu ilhamento no mundo: “Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brinquei só” – a metonímia dos brinquedos, as voltas do pião no baixo e os rodeios do papagaio no alto, projeta em cada esfera os giros sem saída.

Analogamente, o ângulo do narrador se contrai, carreando as imagens ao íntimo da reflexividade:

[…] Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou. (Ramos, 1953a)

O fragmento descreve a memória em seu jogo dos fatos interiores.4 Fortuita na aparência, ao embaraçar signos de épocas diversas, a retentiva se move pelo princípio das consonâncias: a sequência de fatos, que parece arrumar uma enfiada caótica de visões, preenche por fim os níveis de significado. Evocando o pretérito, esbarra nas origens do seu drama, embora de início o empuxe a ilusão de refúgio; em seguida, os incidentes se conectam e refluem para uma tela única, os nexos de continuidade entre as peças articulam os símiles. O que seleciona e reúne instantâneos de sua vida, no caso de Luís da Silva, é a sensação de estreiteza que o acompanha desde sempre. Não logra falsificar o núcleo danoso da infância, tanto quanto não pode liquidar as mofinas do presente: “Tenho-me esforçado por tornar-me criança – e em consequência misturo coisas atuais e coisas antigas”. Do nevoeiro emerge pouco a pouco a triste realidade, entrevista nas malhas do fracasso que, cosendo os retalhos desse tecido, é o fio da experiência. Recorte-se a frase final: “Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou”. A memória desentranha os objetos da nebulosa, mas nem por isso os encara com lucidez; o olhar carece de um suplemento sensível, a imaginação, para dar amplitude ao vivido.

No tocante à técnica literária, trata-se do realismo deformador, cuja perspectiva estilhaça as matérias do mundo e depois as recolhe na rede da subjetividade. Constrói-se assim uma verdade estética, mais complexa que a verdade abstrata. Tal processo ambíguo, que mescla tempos e espaços, revolve a memória e encadeia magicamente os símiles, concentra paixões que se irradiam muito além do inferno íntimo do narrador. Conforme elabora na ficção uma personagem rente à tragédia, histórica e psicologicamente, o autor engasta em sua trajetória os aspectos que mais de perto constituem a desdita geral. Com isso, o perímetro das suas tensões, riscando o malogro do insulamento, se dilata até os contornos da cultura brasileira, contraditória, e ainda representa a agonia do sujeito na modernidade. Não por acaso, Graciliano recebeu insatisfeito as leituras parciais de Angústia: “João Gaspar Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta premissa arrasou-me. Veja só. Nada há mais falso que um silogismo. Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico. Mas isso diz pouco, não é verdade?” (Candido, 1992),5 declarou em carta a Antonio Candido. O crítico europeu lhe nega a vez de sondar a universalidade por meio do exame de caracteres, e o crítico nacional estima em demasia o poder diluente da atmosfera. Hoje já não resiste dúvida de haver o romance composto a síntese, em sua dialética criativa, dos elementos exterior e interior. Para forjar o testemunho, o escritor emprestou a Luís da Silva muito das próprias vicissitudes, porém o senso artístico acabou por transcender os limites da empiria; a diferença expressiva promove o desdobramento e concede certa liberdade em face da consciência. À medida que encarcera a personagem nos círculos da narrativa, Graciliano Ramos reverte as paixões em objetos da análise.

A presença, em Angústia, de vários tipos e eventos extraídos das retinas do autor – o que Infância, título autobiográfico, veio mostrar – serve antes como prova do empenho inventivo. As obras confessionais de Graciliano Ramos nada têm que ver com melancolia ou derramamento, ajustam-se à ética do observador honesto, de tal forma invadem o olhar subjetivo que não calam mágoas e arestas. Talvez por isso, Augusto Meyer revelou a impressão inicial de haver calculado o escritor, artificiosamente, a anti-infância no livro, opinião que mais tarde corrigiu quando consultou o próprio Graciliano: “nunca mais esquecerei o tom direto, simples, convincente da resposta: em Infância havia de fato um fundo autobiográfico com a aspereza e a marca suja da vida”. E, retrospectivamente, os ecos desse juízo desencantado o fazem lembrar o relato de Luís da Silva: “Angústia e Infância de algum modo se complementam; ao ler Infância, encontrei a chave que abre os segredos daquele pungente solilóquio das nossas trevas interiores” (Meyer, 1956). Movido por igual ânimo nos dois livros, ou seja, disposto a acusar “a marca suja da vida”, o romancista exigente avalia as perdas, mas resiste com uma dialética que mergulha na particularidade para melhor objetivar os reveses – das nossas trevas interiores.

O fecho do primeiro capítulo de Infância, aliás, parece exprimir a perspectiva de Graciliano Ramos. Ao rememorar alguns versos populares, em que se narrava a proeza de um menino valente a ponto de retrucar os maus tratos sofridos de um pároco, comenta:6

[…] Ouvindo a modesta epopéia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para violência. Encolhido e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. Mais tarde, entrando na vida, continuei a venerar a decisão e o heroísmo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam em papa-ratos. De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são espantosos, mas é necessário vê-los a distância, modificados. (Ramos, 1955)

Apesar de partilhar com o herói da façanha as chagas de criança infeliz e lhe invejar o arrojo, o menino Graciliano, ensimesmado, louva o revide violento tão só enquanto ideia, nunca se inclina a semelhante arroubo. Diante das injustiças e subjugações, às quais guarda vivo rancor, o seu espírito pacato assiste à barbárie e reage via imaginário. Incapaz de gestos bruscos, que em verdade são sempre cópias da mesma violência, reserva-se, já adulto, na reflexão e modula o ódio nas palavras – essa visão, altamente problemática, se traduz em enredos de voltagem crítica, cuja energia vaza para as consciências. Isso talvez ajude a entender por que os seus romances se ancoram, dramáticos, na análise de fracassados. A épica redundaria entre nós, parece-lhe, em dois equívocos potenciais: ou o falseamento da história, cujo rastro não abre caminho às rebeldias, ou a cumplicidade aos vezos da ideologia, pródiga em erguer estátuas de barro. O sentimento do fracasso, ao contrário, compreende a crise e o julgamento para fora da aventura falhada, e se suspende o sujeito da realidade, exatamente nesse passo lhe permite reclamar as virtualidades que a experiência insistiu em frustrar. Nos termos de Lukács (2000): “o fracasso é portanto o momento do valor; o pensamento e a vivência daquilo que a vida recusou é a fonte da qual parece jorrar a plenitude da vida”.

Em Angústia, ao representar os infortúnios de uma personagem moralmente derrotada, às voltas com o universo cômico, e a inutilidade do seu impulso heroico, o escritor fabula a ironia do rato que se mete a gato, ou melhor, a papa-rato. Encurralado pelo mundo abjeto, de onde partem a princípio todos os sinais do seu drama, seja a sensualidade venal, seja a política canalha, Luís da Silva termina por centrar na figura de Julião Tavares – que lhe furta a namorada e a ascensão social – o emblema cabal da culpa. Logo, a dignidade espezinhada o compele a assassinar o antípoda, tão seguro está de reproduzir a violência sertaneja que lhe incutia tamanho respeito na infância. É como se, no sistema arrevesado, cujo poder de inversão trata de elevar o legítimo rato a medalhão e reduzir o sujeito digno a rato, pudesse ele resolver os disparates com a repetência da velha ordem. Acontece que, no entanto, nada se adultera com o sumiço do bacharel pulha; o espaço se mantém degradado e o pobre-diabo segue mofino. Sobra-lhe, ao final, a escrita de confissão – nela, a memória aos poucos alinhava, dentro do novelo confuso, o jogo de simetrias entre o passado e o presente, o aqui e o longe, alastrando assim a insolubilidade do pathos.

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Notas

1 A data original da correspondência é 20 de junho de 1945.

2 Ao estudar as linhas de tensão do pathos no estilo dramático, Emil Staiger (1972) pondera: “[…] o herói patético não é caracterizado psicologicamente. O pathos domina-o por completo. A dor, a fé, a ambição são tremendamente simples e planas, e destroem tudo o que a alma poderia encobrir. O pathos consome a individualidade. Quem foi arrebatado por ele desconhece a singularidade de sua existência”; como figura canhestra no tempo presente, o seu espírito se anuvia entre os danos da práxis e os anseios de reviravolta, sem jamais desatar o nó: “Mas não se trata aqui do real e, sim, do que virá a ser. Se a coisa apresenta-se de algum modo como tentativa de modificação do status quo, terá não só ela, mas tudo de que se serve, que ser do mesmo modo inverossímil, naturalmente dentro de limites que não escapem à capacidade de percepção do homem”.

3 Carpeaux (1986) já atentou para esse aspecto nos livros do autor: “O culpado é – superficialmente visto numa primeira aproximação – a cidade. O herói de Graciliano Ramos é o sertanejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, para o mundo do movimento. É o vagabundo (um pobre nordestino…); e explica-se o seu ódio balzaquiano ao mundo burguês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio de secos e molhados. Esta vagabundagem é o aspecto sociológico do egoísmo do sonho quando se choca com a realidade”; mas em seguida discerne as funduras da tensão, cujo raio se estende além das evidências espaciais: “Os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho de angústia que é esta vida”.

4 A expressão é do próprio escritor, consta do conselho dado à esposa, que então ensaiava fazer ficção: “Uma opinião: não me parece que o enredo seja coisa demasiado importante. Não me preocupo com enredo: o que me interessa é o jogo dos fatos interiores, paixões, manias, etc.” (Ramos, 1982. A carta data de 30 de dezembro de 1935).

5 A carta, reproduzida integralmente no prefácio do exemplar, data de 12 de novembro de 1945.

6 O autor assim resume a historieta que lhe ficou inculcada na memória: “Um menino pobre foi recebido caridosamente em casa de certo vigário amancebado. Temendo ver na rua os seus podres, o reverendo ensinou ao pequeno uma gíria extravagante que baldaria qualquer indiscrição possível. Afirmou que se chamava Papa-hóstia e à amante deu o nome de Folgazona; gato era papa-rato, fogo era tributo. Esqueci o resto, e não consigo adivinhar por que razão tributo serviu para designar fogo. Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a maltratá-lo. Não se mencionou o gênero dos maus tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. Acostumara-me a isto muito cedo – e em consequência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos padecimentos, realizou feito notável: prendeu no rabo de um gato um pano embebido em querosene, acendeu-o, escapuliu-se gritando: Levante, seu Papa-hóstia,/ Dos braços de Folgazona./ Venha ver o papa-rato/ Com um tributo no rabo”.

Referências

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