nov.13: Memórias do Cárcere, parte III, capítulo XXIV
Publicado em 01 d novembro d 2013
Tinham conseguido armar na cama vizinha um difícil mosquiteiro. Na manhã seguinte vi sentado nela um sujeito maduro, atraente, óculos grossos de míope, a roupa de casimira pelo avesso.
– Bom dia, atirou-me risonho e lento.
Estava com desejo de conversar e logo se apresentou: Mota. Escorregamos depressa numa camaradagem fácil, tive realmente muito prazer em conhecê-lo.
– O senhor tomou parte na Aliança Nacional Libertadora, seu Mota?
– Não senhor, respondeu a criatura amável. Tinha as minhas simpatias. Sou admirador de Prestes.
Vejam só. Porque simpatizava com a Aliança Nacional Libertadora- cadeia, braços cruzados, a roupa vestida pelo avesso, a cabeça baixa e sem cabelos. Pobre seu Mota. A situação dele era com certeza a de Manuel Leal, meu amigo velho arrancado às Alagoas, metido no cárcere dos sargentos no quartel do Recife, depois no porão do Manaus e agora ali a carregar tijolos. Mas Leal não tinha o sossego, a conversa amável de seu Mota. Andava irritado, sombrio, num desespero mudo contínuo. Um dia essa mudez se quebrou e o infeliz, de volta do trabalho, suado, coberto de pó vermelho, dirigiu-se a mim, ríspido:
– Por que é que estou preso? Hem? Diga.
Estranhei, tive pena do homem a desabar em velhice rápida. Coitado. Não me parecia longe o tempo em que os tristes olhos hoje apagados no rosto murcho brilhavam muito vivos; os fartos anéis da cabeleira negra seduziam mulheres. Pobre de Leal. Provavelmente a decadência não era apenas física; o espírito devia estar em declínio também para ele me vir fazer tal pergunta.
– Que é que você quer que lhe diga? Sei lá! Nem sei por que estou preso.
O meu antigo camarada engasgou-se, esteve um minuto a examinar-me com espanto e censura. Tomou fôlego, e, de supetão:
– Você? Ora essa! Está preso porque é comunista. Sempre foi.
Declarou isso aos berros, sem ligar importância aos guardas e à polícia.
– Desde menino. Sempre foi. Ainda usava calças curtas e já lia essas coisas no balcão de seu pai. Mas eu? Que foi que eu fiz para estar aqui? Hem? Explique.
Cheio de piedade, não conseguia eximir-me ao desejo de rir ouvindo esse despropósito. Leal gritava a denúncia, provavelmente ignorando que ela me poderia ser funesta. Não repliquei, temendo encolerizá-lo mais. Coitado. Não perceberia a exígua significação das brochuras que li na infância; continham veneno, supunha, estava nelas a causa da minha desgraça. Tinham sido justos comigo. Pois não passara a vida a procurar sarna para me coçar? Com ele havia injustiça. Por quê? Responsabilizava-me:
– Diga. Porque me mandaram para aqui? Diga ao menos que é comunismo. Não sei. Nunca me meti com vocês, nunca li nada disso. Explique.
A aflição tornava egoísta uma pessoa amorável. Desequilíbrio, certamente. Vinham-me à lembrança o riso aberto de Leal, as anedotas de caixeiro-viajante, sem graça, narradas muitos anos atrás, quando ele se hospedava em nossa casa do interior. Que horrível decadência! Via-me obrigado a fazer a comparação, e isto me dava imenso desgosto. Não me ocorreu uma palavra generosa, capaz de minorar aquela angústia. Afastei-me em silêncio. Esquisito afligir-se um prisioneiro de tal modo, não achar sossego, alhear-se do meio, o pensamento fixo no exterior, em casos remotos. Esses viventes arredios ficam desagradáveis. Sentimos não poder auxiliá-los, distraí-los; receamos contagiar-nos, findar naqueles tormentos. Buscamos a companhia de sujeitos expansivos, esboçam-se camaradagens num instante desfeitas. As histórias de Gaúcho afugentavam-me o sono, ser-me-ia agradável escutá-lo muitas horas. Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.
– Imagine vossa mercê. Peguei um dia uma roupa nova bacana, azul-marinho. Assentava no meu corpo e não foi para a muamba. Vesti-me nela e caí na rua. Pois veja que azar. Na Lapa um sujeito do meu tope começou a espiar demais para mim e não me deu tempo de pirar. Chegou-se e atacou:- “Moço, me desculpe. Onde foi que o senhor arranjou esse terno?”- “Pergunta muito bem, respondi eu. Comprei hoje por cem mil-réis a um adelo da Rua da Constituição, número tal.”- “Pois, moço, juro que esse terno é meu. Foi roubado ontem.” Aí eu me ofendi e propus:- “O senhor quer ir comigo falar com o adelo, agora mesmo? É um negociante conhecido.” O tipo afrouxou:- “Não, não, posso estar enganado. Mas ia garantir que não estou. É o feitio, é a cor, é o tamanho.” Foi-se embora. E eu voei para casa. Um susto medonho, não sei como tive tanta calma. Tirei a roupa e disse à mulher:- “Leva este diabo ao intrujão, dá sumiço a isto.” A gente não deve usar as coisas que rouba.
A conclusão vinha quase em forma de conselho: o ótimo ladrão parecia querer livrar-me de tais vexames. Também me agradava a figura tranqüila de seu Mota. Apesar de ser vítima de uma iniqüidade, pois não se envolvera em política, mantinha na prisão excelente humor.- “Bom dia.” Estava ali junto, emoldurado pelo mosquiteiro entreaberto, os óculos a faiscar. A voz nunca se alterava, e a afável saudação nos transmitia serenidade. Realmente só vi seu Mota zangar-se uma vez. Fazia uma semana que nos conhecíamos, e ele me narrava os seus começos. Fora secretário da prefeitura em Corumbá, ou Cuiabá, não me lembro. De fato quem se responsabilizava pela administração era ele, que o prefeito, coronel e analfabeto, não entendia de verbas.
– Esse matuto viajou para o Rio e lá ficou três meses. Dirigi o pessoal na ausência do homem e fiz boa arrecadação. Quando ele chegou, havia em caixa trinta contos, naquele tempo uma fortuna. Arrumei o balancete e dei ao prefeito a chave do cofre. Não faltou um tostão.
O meu vizinho interrompeu-se, um minuto se conservou absorto, o olhar distante, mergulhado nas suas recordações. Súbito inquiriu:
– O senhor acredita? Acha que eu entreguei esse dinheiro?
– Sem dúvida, seu Mota. Ora essa!
O ex-secretário da prefeitura de Corumbá teve um longo suspiro:
– Entreguei. Foi uma doidice. Com trinta contos nas mãos, e passei a outro esse dinheiro todo. É o remorso que me persegue na vida.
Seu Mota concluiu, exaltando-se:
– Eu era muito novo. E muito burro.
IN: RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2011, p.482-485.
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