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out.14: Graciliano e Carpeaux

Publicado em 01 d outubro d 2014

Obras-primas desconhecidas do conto brasileiro

Alguns momentos de palestra com Graciliano Ramos — Crítica literária na livraria — Coelho Neto é uma droga — Um conhecedor de Lobato — Os grandes contos brasileiros que ninguém conhece — Graciliano como pesquisador histórico

Otto Maria Carpeaux
A Manhã, 1949

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Nos fundos da Livraria José Olympio escura e quente, existe um banquinho, incômodo como banco dos réus… eis o lugar preferido do mestre Graciliano Ramos, teatro de conversas saborosas. Já se formou uma “leyenda negra” em torno dessas conversas cada vez mais “pessimistas”; por exemplo, eu teria dito, ao entrar: “Bom dia!”, e Graciliano teria respondido: “Você acha?”.  São lendas nas quais há, porém, como em todas as lendas, um grão de verdade. Ali fala-se mal do mundo. E mestre Graciliano, não raramente, fala mal da literatura brasileira. Já é conhecida sua resposta a um rapaz que defendeu certo escritor cearense cuja vida teria sido superior à sua obra: “Qualquer vida teria sido superior à sua obra”. Os visitantes da província assustam-se sobretudo da irreverência de Graciliano com respeito a Machado de Assis; mas não é tanto assim.

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Um inimigo de Machado de Assis?

— Machado de Assis é grande escritor — me diz Graciliano Ramos —, apenas não é romancista. Do ponto de vista da técnica novelística, todos os seus romances são deficientes. São misturas de crônicas, ensaios, aforismos, meditações, contos, sobretudo de contos. O Brás Cubas não é outra coisa senão uma narração incoerente, com uns contos interpolados. Magníficos contos, aliás, pois Machado é grande nesse gênero, maior entre os brasileiros. Como contista, o autor do “Trio em lá menor” e da “Causa secreta” seria grande em qualquer língua, você não acha?

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Os grandes contistas do mundo

— Acho. Você sabe como admiro o velho. A última página do “Velho Senado”  afigura-se-me como a maior página de prosa portuguesa escrita no Brasil. Mas gostaria de saber algo dos critérios em que você apoia seu julgamento. Há quem aponte Maupassant, Kipling e Tchekhov como os contistas-modelos. Você concorda com isso?

— Gosto de alguns contos de Kipling, apesar da aversão ideológica que o imperialista inglês me inspira. Admiro Boccaccio e outros italianos da Renascença, admiro muito o “Rinconete y Cortadillo” de Cervantes, você se lembra do diálogo? “Es vuesa merced, por ventura, ladrón? — Si, respondió él, para servir a Dios y a las buenas gentes”.  Depois, há Gogol, há Dostoievski, há Tchekhov sobretudo e Gorki. E “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi,  que você mesmo me recomendou certo dia, talvez seja o maior conto de todos os tempos. Aí você vê os meus critérios. Mas não gosto absolutamente de Maupassant.

— Vejo bem a relação entre a sua aversão contra Maupassant e a sua admiração pelos contos de Machado. Talvez a imitação de Maupassant tenha estragado outros contistas brasileiros?

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Os bons contistas… e os outros

— Não sei se é isso. Não quero fazer o crítico literário. Mas é verdade que nunca houve, com exceção de Machado, grandes contistas no Brasil. Apenas houve indivíduos que escreveram, acidentalmente, um ou outro conto bom. Posso citar “Os demônios”, de Aluísio Azevedo; alguns do velho Afonso Arinos, como, por exemplo, “Joaquim Mironga”; depois, “Duelo de farrapos” e mais um ou dois de Simões Lopes Neto. Os chamados contos de Artur Azevedo são apenas crônicas bastante frívolas. Mas João Ribeiro poderia ter sido autêntico contista como se revela na “Floresta de exemplos”. João Alphonsus tem boas coisas: “Sardanapalo”, “Noite de conselheiro”. Entre os vivos, aprecio muito a arte de Marques Rebelo, arte de transformar em delicado e delicioso lirismo as safadezas da canalha carioca. Os contos de Marques são muito melhores do que as afamadas histórias de Lima Barreto.

— Deixa em paz o Lima Barreto! Na minha tábua de admirações ele vem logo depois de Machado de Assis. Me parece aliás que você também sente certa ternura pelo mulato genial e infeliz, apenas não quer admitir, por amor ao paradoxo.

Aí o velho Graça perde a paciência:

— Acham paradoxo quando digo a verdade.

Tira o paletó, como se quisesse ir à luta corporal.

— Digo a você que Lima Barreto, que foi muito mais sincero do que Machado, não presta. Digo mais: que todos os outros contistas brasileiros não prestam. Alcides Maya é fraco. Coelho Neto é uma droga. De Alcântara Machado perdoam-se algumas páginas, talvez “Carmela”, mas o resto não vale nada. Os contos de Mário de Andrade são ruins como todos os diabos.

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Conversa de diabos

Já dizia eu que as frases decisivas de Graciliano Ramos terminam sempre com “todos os diabos”? Já o ouvi dizer que ele odeia os jesuítas e outras ordens religiosas mas — “os franciscanos são magníficos como todos os diabos”. Daí não se sabe com certeza se o apelo ao Inferno não encerra porventura um elogio. “Es vuesa merced, por ventura, ladrón?” Graciliano gosta dos criminosos, pelo menos na ficção. Que pensaria ele do “Comprador de fazendas”?  Arrisco-me a perguntar:

— E Monteiro Lobato?

A resposta vem pronta:

— Não conheço.

Evidentemente Graciliano conhece muito bem os contos de Lobato. Mas não quer conhecê-los. Em compensação, acrescenta:

— Mas conheço alguns bons contos brasileiros que todo mundo ignora.

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Tesouros ignorados da literatura brasileira

Basta isso para provocar a maior curiosidade. Descobrir coisas novas, e boas, na literatura brasileira é um fraco meu. E não sei de guia mais seguro numa floresta de falsas celebridades e de valores injustamente esquecidos do que esse crítico insubornável ao meu lado, que não quer ser crítico e que, no entanto, dos fundos de uma livraria, ilumina uma literatura inteira.

— Há uns tempos — começa Graciliano — andei estudando aquilo que se chama conto brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda abriu-me com a maior gentileza os, digamos, tesouros da Biblioteca Nacional.  Passei lá três meses, folheando velhas revistas e jornais. Quanto coisa obsoleta, quanta besteira! No entanto, eu já dizia a você que os verdadeiros contistas brasileiros  são indivíduos que escreveram, acidentalmente, um ou outro conto sofrível e às vezes notável. Fiz algumas descobertas. Raul Pompeia (não gosto, aliás, do Ateneu) tem um conto muito bom: “Tílburi de praça”. Os contos de Medeiros e Albuquerque, em geral, não prestam; mas “O ratinho Tic-Tac” é exceção. Do Mário de Alencar descobri um conto notável, “Coração de velho”. Outro esquecido, Domício da Gama, tem só um conto bom, mas é realmente bom e se chama mesmo: “Só”. E quem conhece os contos de Alberto de Oliveira? Quem já leu “Os brincos de Sara”? Pois eu li e gostei.

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O otimismo do velho Graça

Há tantos anos que conheço Graciliano, mas raramente ouvi dele tantas afirmações positivas de uma vez. Será que o velho virou otimista?

— Então — pergunto —, você já pensou em reunir essas obras-primas desconhecidas do conto brasileiro? Obras-primas não, quero dizer: de contos bons, isto sim.

Insisto:

— Será, em todo caso, uma boa, digamos, floresta de exemplos.

Mas Graciliano Ramos não tolera esse meu acesso de otimismo.

— Boa — pergunta, reincidindo —, você acha?

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Do livro Conversas, de Graciliano Ramos. Organização de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 207-13.

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Em bilhete enviado a Chico Cavalcanti, aceitando a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios – AL, 1927 (O Velho Graça, Dênis de Moraes, Boitempo, pg. 61)