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jan.13: Conversas com Joel Silveira (I)

Publicado em 01 d janeiro d 2013

A resistência de Graciliano, fazendo corpo mole e sempre adiando o prometido, e, por outro lado, a minha determinação de arrancar dele a entrevista de qualquer maneira, acabou nos aproximando. Pelo menos duas vezes por semana lá estava eu na José Olympio, aporrinhando-o.

– ‘Seu’ Graciliano, e a entrevista?

E vinha a mesma resposta de sempre:

– Me dê mais um tempo. Ando atolado na leitura de uma montanha de originais, dezenas e dezenas de literatos que querem o “Prêmio Humberto de Campos”, aqui da José Olympio, não tenho tido tempo para mais nada, varo a madrugada. Nunca vi tanta porcaria junta. Me dê mais uns dias.

Eu dava o tempo, voltava:

– Sabe, ‘seu’ Graciliano, é que eu queria iniciar a série com a sua entrevista. Combinei isso com o Magalhães Júnior, ele concordou, e agora vive me cobrando.

Ele se esquivava:

– Bobagem. Por que começar comigo? Tem aí o Zé Lins, o Jorge, o Marques, o Lúcio (Cardoso), uma porção de outros. Comece com um deles, me deixe para o fim.

– Mas ‘seu’ Graciliano…

– E pare com esta besteira de me chamar de ‘seu’ Graciliano. Graciliano basta.

Como disse, de tantos encontros na José Olympio, acabamos amigos. Talvez fosse fantasia, mas o fato é que eu sentia de sua parte uma certa simpatia por mim, embora me tratasse com aquele jeito áspero e cru que era o seu. Algumas vezes, quando não estava ensimesmado, curtindo sozinho a sua acidez, gostava de puxar conversa, pulava de um assunto para o outro, baforando forte ou segurando entre os dedos a guimba do cigarro ordinário. Outras vezes, e eu percebia logo isso só de ver a sua carranca, não queria muita conversa, me despachava com um seco “ainda não tive tempo, vou ver se faço hoje à noite”, e nessas ocasiões eu sabia que não devia insistir, ia embora.

Uma manhã, e era sempre pela manhã que eu o procurava na livraria, lá nos fundos, território que ele fizera seu e que ninguém ousava disputar, pois, como ia dizendo, uma manhã lá estava eu a chateá-lo e mal ia entrando no assunto da entrevista, quando ele me perguntou, abrupto:

– Você sabe por que o Brasil não é e nunca será uma potência digna deste nome?

Eu não sabia:

– Pois lhe digo.

Baforou forte, continuou:

– Não será potência neste século nem nos séculos vindouros. Nunca.

– Mas por que, Graciliano? Somos um país imenso, temos três fusos horários, somos donos de mais da metade de toda a floresta amazônica, nosso subsolo, segundo dizem, é riquíssimo em minerais, temos os maiores rios do mundo e até o petróleo já começa a esguichar lá em Lobato, nas portas de Salvador.

Ele me ouvia calado, cigarro entre os dedos. Esperou que eu acabasse minha peroração ufanista, disse:

– Não adianta. Nem que fôssemos donos da maior mina de ouro do mundo, de todos os diamantes e platinas existentes na terra, nem com isso tudo seríamos uma potência. E por um simples motivo.

Por mais que forçasse a cabeça eu não podia adivinhar que motivo seria esse. Perguntei:

– Mas por que, qual o motivo? Não me ocorre nenhum.

Ele deu uma baforada, explicou:

– O motivo é simples: não temos golfo.

– Golfo?

– Exatamente. O Brasil não tem golfo. E não existe uma só potência no mundo que não tenha pelo menos um golfo. É só consultar o mapa. Estados Unidos, Rússia (apesar de comunista, ele jamais dizia União Soviética), França, Itália, Japão, todos têm golfo. E procure depois os países que não têm golfo: são todos sem importância, como é o caso do Brasil.

Naquele tempo eu cultivava um acendrado patriotismo juvenil – protestei:

– Me desculpe, Graciliano, mas você está sendo radical demais. Não posso concordar. Com este tamanhão todo e com todas suas riquezas, as que já se conhecem e as que serão conhecidas, é claro que o Brasil certamente será uma potência no futuro. Tem que haver uma solução.

Ele atalhou:

– E há.

– Qual?

– Simples. O Brasil tem que ter um golfo, fazer por conta própria o golfo que a natureza lhe negou.

Ri, pensando que ele estava pilheriando, mas a cara séria dizia o contrário.

– Repito, temos que fazer um golfo. E para isso a solução existe.

– Qual é?

– Veja você o caso de nossas respectivas terras, Alagoas e Sergipe. Para que servem Alagoas e Sergipe? Para nada, são zero à esquerda. Então, pergunto: por que não cavar Sergipe e Alagoas e no lugar fazer um golfo? O Golfo das Alagoas!

A solução era obviamente inviável, mas de qualquer maneira, atingido nos meus brios de sergipano ainda intacto, protestei:

– Por que Golfo das Alagoas? Por que não Golfo de Sergipe?

Ele desconversou:

– Isso de nome não tem importância. O importante é fazer o golfo. Para a escolha do nome, faz-se um plebiscito.

***

Outra história, recolhida numa daquelas manhãs, não foi nem história, mas uma lição que nunca esqueci, o que não quer dizer que a tenha aprendido. Me disse Graciliano, depois de folhear um livro qualquer, não lembro qual:

– Este cavalheiro pensa que escreve. Não escreve, escrevinha.

E continuou:

– Escrever é uma coisa, escrevinhar é outra.

E lá se foi:

– Aqui no Brasil os nossos críticos vivem a dizer que “fulano tem estilo”, “o estilo de sicrano”.  Bobagem. Estilo quem tem é Stendhal, são os russos do século passado, é Dickens. Quem tem estilo aqui no Brasil? Machado, talvez.

Enquanto ele ia falando, eu me dizia: “Se ele não me der a entrevista, alinhavo em cinco laudas tudo isto que ele está dizendo, resolvo o problema”.

Graciliano continuou:

– Os escritores brasileiros, e falo dos ficcionistas de agora e mesmo os do passado, podem no meu entender ser divididos em duas categorias: os que têm uma “maneira” de escrever, e são poucos, e os que têm “jeito”, que são alguns mais numerosos. O resto é porcaria.

Provoquei:

– E Graciliano Ramos tem maneira ou jeito?

– Jeito.

***

Outra lição dele, noutra manhã. (Devo dizer que logo eu saía daqueles encontros corria a passar para o papel tudo o que ele havia me dito: a entrevista tinha que sair de qualquer maneira). Falava-se do ofício de escrever, ele disse:

– Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada.

Também não entendi. Ele explicou:

– Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhum palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal.

E prosseguiu – naquela manhã estava de língua solta:

– Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Sabe como elas fazem?

– Não.

– Elas começam com uma primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam, e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer.

***

Certa vez fiquei com muita raiva dele, embora não a tivesse manifestado. É que na noite anterior, lá no torreão, eu havia enfim terminado um conto que vinha escrevendo há dias. Estava no maior entusiasmo. Levei as laudas datilografadas para Graciliano ler e opinar. Depois da leitura, que me pareceu terrivelmente lenta, e sem dizer uma só palavra, Graciliano foi rasgando as laudas, uma por uma, metodicamente, até reduzir tudo a uma infinidade de pequenos quadrados e triângulos. Eu fervi: não tinha sequer tirado uma cópia da obra-prima. Imperturbável, sem levar em conta o meu visível desconforto, Graciliano rasgou tudo, sem pena. Em seguida, me convidou:

– Vamos ao Mourisco.

Tomamos um cafezinho, depois do cafezinho ele entornou um cálice de conhaque, voltamos caminhando devagar, parando nas bancas de jornais para ler as manchetes. Falou-se de assuntos vários, nada de ele se referir ao conto que minutos antes reduzira a farelos. E não seria eu que ousaria no assunto, embora estivesse me roendo por dentro: “Merda, nem uma crítica, uma observação, dizer por que não gostou, que bosta!”

Fiquei dias sem procurá-lo. Depois esqueci a tragédia, e somente anos depois, quando voltamos a nos encontrar numa solenidade qualquer, não me lembro qual nem onde, é que arrisquei:

– Aquele conto que você destruiu com tanto furor, lembra-se?

– Claro que lembro.

– Era tão ruim assim?

– Uma porcaria. Tinha gerúndio demais. Gerúndio só quando absolutamente necessário. Dos supérfluos a gente deve fugir como o diabo da cruz.

No caso de Graciliano Ramos – e ainda hoje penso assim – o gerúndio é que fugia (foge) dele.

IN: SILVEIRA, Joel. Na fogueira: memórias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.281-285.

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Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas.

Memórias do Cárcere, cap. 5